Câmera Lúcida | Chambre Claire Universelle – P.Berville

Este é um aparelho destinado a auxiliar a realização de desenhos ampliados ou reduzidos a partir de originais ou mesmo direto de uma cena real. O desenhista olha para a ponta do lápis sobre o papel e vê, simultaneamente e no mesmo lugar, uma imagem do que está à sua frente. Seu trabalho é então o de traçar os contornos apenas seguindo essa imagem dupla.

Como se vê na ilustração acima é uma haste fixa na mesa onde a folha de papel também é presa para que não haja movimento entre os dois. A haste é regulável, podendo ficar próxima ou mais distante do desenho. Na ponta ela possui um pequeno prisma que irá permitir a imagem dupla. Movimentando o olho em um plano horizontal, para frente, para trás, direita e esquerda, o desenhista poderá cobrir a área toda da folha sempre vendo em cada ponto uma imagem dupla da folha de papel e do assunto a ser desenhado.

Acompanha o aparelho um jogo de lentes que ajudam a visualizar tanto o assunto do desenho quanto, eventualmente, o desenho propriamente dito. Alguns filtros podem também ser empregados para se balancear a luminosidade da cena em relação á luminosidade do papel.

A Câmera Lúcida, ou Camera Lucida no inglês ou ainda Chambre Claire no francês, foi muito empregada no século XIX e início do XX. Elas eram em geral construídas totalmente em metal e eram consideradas como um instrumento científico e artístico ao mesmo tempo. Esta da coleção é uma clássica Chambre Claire Univeselle de P. Berville. Muitos milhares como esta foram fabricados e nem é difícil se encontrar ainda hoje exemplares em perfeitas condições. Elas eram acondicionadas em estojos forrados de couro e veludo e as que tive oportunidade de ver, ainda apresentam uma cromação impecável, partes móveis ainda justas e precisas, mesmo depois de mais de 100 anos.

Como funciona a Câmera Lúcida

A ciência ou tecnologia envolvida em uma Câmera Lúcida não tem nada de muito sofisticada. Como a ideia de base é poder olhar para baixo, para a mesa de desenho, e ao mesmo tempo para frente, para uma cena ou original a reproduzir, qualquer espelho de reflexão/transmissão parciais em princípio serviria. A Câmera Lúcida é um aperfeiçoamento dessa ideia.

Utilizando-se um meio-espelho, M na figura acima, é possível ver simultaneamente a luz transmitida pela folha de papel e a luz refletida pela estatueta da Vênus. O desenhista deve então ir marcando com o lápis o local onde ele vê (por exemplo) o umbigo e os outros pontos e linhas da sua modelo. Utilizando-se algumas lentes é possível resolver problemas de proporção e focalização das duas imagens.

O problema com esse arranjo é que o desenho sai de ponta cabeça pois o espelho inverte a imagem. Se o processo fosse realmente apenas “marcar o que se vê e como se vê”, essa inversão não deveria ser problema. Bastaria, obviamente, virar a folha depois de terminado o desenho. Mas essa é geralmente a surpresa, ou decepção, daqueles que experimentam pela primeira vez uma Câmera Lúcida: é preciso saber desenhar. Um desenho nunca é apenas cópia da realidade. Existem convenções que aprendemos como observadores de desenhos e se o desenhista não as dominar minimamente a imagem nos parecerá torta e desajeitada.

Para resolver isso basta se utilizar, em vez de uma, duas reflexões seguidas. O inverso do inverso é o direito, assim temos a imagem no desenho na mesma posição daquilo que o desenhista vê à sua frente.

Para produzir as duas reflexões seguidas utiliza-se um prisma de 4 faces como o mostrado na figura acima (fonte Wikipedia). S é um ponto qualquer no objeto. Seu feixe de luz atravessa a superfície AD do prisma pois incide frontalmente sobre ela. Em seguida esse feixe encontra a superfície CD, pelo ângulo de incidência ser bem mais oblíquo, o feixe é refletido para cima. Se alguém pudesse ver essa imagem de S, que está em S” (simétrica de S em relação ao plano do espelho), veria S” e seu entorno de ponta cabeça, como no caso anterior com a Vênus.


Lembrando que olhar para um objeto no espelho é como olhar um outro objeto exatamente simétrico do primeiro em relação ao plano do espelho. Note que no esquema os pontos S e S” são simétricos ao plano CD. O mesmo acontece com S” e S”’ em relação ao plano BC.

Mas os raios emergentes de CD encontram uma terceira superfície do prisma: BC. Nela refletem novamente. Essa segunda reflexão gera a imagem em S”’. Essa imagem é a inversão da inversão e portanto tem o mesmo sentido da imagem na região de S. Essa imagem pode ser vista nos raios de luz, provenientes de BC e que atravessam AB, por conta do ângulo de incidência ser agora quase reto.

Tudo isso é muito bom mas o problema agora é que olhando através do prisma não vemos a folha de papel como veríamos com um meio espelho. As reflexões que os raios sofreram para sairem por AB foram totais e olhando através de AB só vemos a imagem S”’ de S. Ela está no lugar certo mas não vemos esse “lugar” através de AB para poder desenhar sobre ele.

A ilustração acima é do manual da Câmera Lúcida P. Berville. Note que o prisma não está desenhado corretamente. Mas podemos com ela entender a solução para se enxergar a imagem dupla da folha de papel e do objeto a ser desenhado. Tudo se resolve com o posicionamento de nossa pupila. Devemos colocar nosso olho muito próximo do prisma. Na posição marcada em A, vemos apenas o que passou pelo prisma, isto é, o papel está fora do campo de visão. Em C, ao contrário, vemos apenas o papel e os raios emergindo do prisma não chegam à nossa pupila. Em B temos a solução: a metade de cima de nossa pupila forma imagem do que vem do prisma e a metade de baixo forma imagem do que vem do papel.

Câmera Lúcida e a fotografia

O conceito básico da Câmera Lúcida foi descrito pelo astrônomo Johannes Kepler em 1611. Mas não despertou interesse na época. Quase duzentos anos mais tarde, em 1806, William Hyde Wollaston patenteou um aparelho já com o prisma de quatro faces como o descrito acima. Wollaston era químico e físico e desenvolveu também uma objetiva para a Câmera Escura, com abertura por volta de f/11. Ela ficou conhecida como lente para paisagens de Wollaston (Wollaston landscape lens). Essa objetiva, um menisco, em muito melhorou a imagem em relação às biconvexas ou plano convexa que se usavam até então. Ela foi uma boa base para as primeiras objetivas para paisagens usadas em fotografia, nas quais o próximo passo foi a correção da aberração cromática.

O espaço de 200 anos, entre Kepler e Wollaston, foi o que demorou para que a produção de imagens deixasse de ser quase que exclusivamente de aspecto devocional ou político, pois a maioria esmagadora do que se produzia era de cunho religioso ou cenas históricas e retratos de nobres. Ao longo desses 200 anos foi-se abrindo um amplo espaço para temas científicos ou do cotidiano, ambos com uma fatura naturalista.

A Câmera Lúcida, a Câmera Escura e a Fotografia, começaram a fazer sentido no início do século XIX por conta de uma nova relação ou uma nova visão da Natureza, ou da realidade, do tempo presente e seus eventos. De repente, foi uma corrida por meios mecânicos para a produção de imagens atuais, imagens que se viam. Um desejo enorme de não mais depender do artista e seus patronos como única fonte das imagens que circulavam. As imagens sempre representaram, sempre documentaram, mas não se queria mais que esses “documentos” estivessem tão à mercê das preferências das autoridades, tanto seculares como espirituais. A reprodução mecânica de imagens está inserida na ideologia trazida pelo Iluminismo, na possibilidade de uma nova forma de se adquirir conhecimento através da observação direta, na valorização do tempo presente em relação ao tempo mítico ou histórico e na Natureza como referencial absoluto.

Este aspecto da emergência da fotografia por um “desejo de fotografia”, muito mais que por qualquer limitação tecnológica nos tempos que a antecederam, foi discutido com um pouco mais em profundidade no artigo sobre o Museu Nicéphore Niépce.

A trajetória da Câmera Lúcida está totalmente entrelaçada com a da fotografia. Ambas responderam a essa busca de automação no processo. A Câmera Lúcida não realizava o registro químico da luz, mas oferecia uma imagem ópticamente perfeita, pronta para ser copiada ainda que manualmente. Ela foi muito útil como meio para transferir fotografias para outros suportes. Depois do d’après nature, expressão que significa “feito sobre o vivo” e que se usava para conferir autenticidade às imagens desenhadas, veio o d’après photographie, com o mesmo ensejo de afirmar que a imagem correspondia a uma cena real.

No artigo sobre as Fadas de Cottingley há uma discussão mais aprofundada sobre a questão da autenticidade das imagens.

Na década de 1840 surgiram os primeiros periódicos com um espaço privilegiado às imagens. Mas apenas em 1891 foram aperfeiçoados e adotados métodos foto-mecânicos para reproduções fotográficas sem passar pelo desenho manual. Nesse período, era muito comum que jornais trouxessem na legenda essa nota de que a imagem representada vinha de um original fotográfico. Na primeira página do L’Illustration, n°453, de 01/nov/1851. Sob a foto em baixo da página lemos,  “A cidade e o castelo de Falaise (berço de Guilherme o Conquistador, a partir de uma fotografia de M. de Brébisson”. (fonte: D’après photographie – Premiers usages de la photographie dans le journal L’Illustration (1843-1859) Thierry Gervais)

Não se pode afirmar que esse desenho no jornal foi realizado ou não com uma Câmera Lúcida a partir da fotografia. O L’Illustration, em particular, utilizava os melhores desenhistas e gravadores de Paris na época. Eles saberiam com certeza fazer o desenho sem o auxílio de qualquer aparelho. Mas o importante aqui é notarmos a preocupação em render visualmente as imagens com o mínimo possível de subjetividade. A Câmera Lúcida serviu por décadas como uma solução intermediária entre o desenho à mão livre e o fotográfico e foi muito popular nesse tipo de utilização.

Câmera Lúcida P. Berville em uso

Uma observação inicial é que o uso deste exemplar da P. Berville tal qual ela sai da caixa só é possível para aqueles que enxergam bem. Como eu já não consigo focalizar uma folha de papel a 30 ou 40 cm sem um óculos de leitura, eu imprimi em 3D um suporte para uma pequena lente cortada de um óculos de +2 dioptrias. Montei o suporte obtendo o seguinte arranjo.

Dessa forma, através do prisma eu veria meu assunto a copiar passando pela lente escolhida para isso, e fora do prisma, olhando diretamente para a folha de papel eu teria o auxílio desta lente extra.

Escolhi este retrato e o imprimi digitalmente. Porém, colocando-o na posição para ser copiado com a Câmera Lúcida, achei difícil decidir onde exatamente marcar as linhas do desenho. Alguns contornos são óbvios, mas outros, ficam em uma região de transição de luz e sombra e é muito difícil decidir onde exatamente passar uma linha. É preciso saber desenhar para tirar todo proveito desse aparelho.

Para facilitar modifiquei a imagem digital com um filtro de modo a dar mais definição nas passagens de tons. Utilizei essa segunda versão para traçar o desenho. A visão das imagens sobrepostas tem o seguinte aspecto:

Há uma zona de transição entre uma área onde se vê apenas o desenho e outra onde se vê apenas a foto (através do prisma). É nessa faixa de transição que devemos desenhar. Na posição acima poderíamos desenhar o nariz, mas não a boca e nem os olhos. No primeiro caso não vemos a foto e no segundo não vemos o papel.

Abaixo, o meu arranjo completo. É fundamental que o papel de desenho, a fotografia e o aparelho fiquem fixos entre si. Nessa foto eu já havia soltado a folha, mas durante o traçar das linhas ela ficou presa com blue tape.

Tentei então fazer as marcações e depois colori com aquarela. Pode-se notar que ficou bem tosco mas, talvez tenha sido ambicioso demais em fazer logo de primeira um retrato. O fato é que é necessário muito treino com o desenho e mais treino ainda com a aquarela se esta for a técnica escolhida. A Câmera Lúcida ajuda muito a manter as proporções corretas, isto é, as coisas ficam no seu devido lugar. Mas na hora de executar os detalhes, cores e volumes, é preciso muito treino para se realizar algo com aparência mais profissional.

 

 

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