Com os olhos bem abertos – 100 anos de fotografia Leica | Photo España 2017

A Leica está comemorando seu centenário. Uma belíssima exposição foi montada e já foi exibida em cidades como Frankfurt, Hamburgo e Porto. A visita que eu fiz foi no Espacio Fundación Telefónica, em Madri, e faz parte do conjunto de mostras da Foto España 2017.

Quando a fotografia foi inventada, o principal argumento dos tantos que participaram em seu desenvolvimento, o pensamento que lhes parecia o mais contundente em favor do novo procedimento para se obter imagens, era o fato de que nele os objetos delineavam-se por si mesmos. Era a natureza reproduzindo-se automaticamente tal qual ela é. O que não se levava em conta naquela fase inicial é que na fotografia o equipamento em si já é uma intervenção tão grande, tão limitante, tão determinante do resultado final, que melhor seria não termos enveredado por essa via de colocar a imagem fotográfica como cópia fiel da realidade.

Sim, é a luz que desenha os objetos, mas quando a luz entra por uma Leica, haverá nela qualquer coisa de particular, uma genética completamente amalgamada com a história, com o gesto, com o formato, com todas as fotos que já foram feitas com Leicas, com as vidas que se contaram com Leicas e um número enorme de outros fatores que intervém e criam algo que só mesmo com muita platitude alguém poderia chamar o resultado, banalmente, “uma imagem fiel da realidade”.

Foto de divulgação da exposição – Christer Strömholm, Nana, Place Blanche, Paris, 1961

A exposicão Con los ojos bien Abiertos, é um estudo desses mecanismos construtores de sentido que circunscrevem o ato de fotografar e consumir imagens pelo vies da “fotografia Leica”. É uma ótima combinação de considerações de ordem técnica, do equipamento, da fabricação, da marca, da tecnologia, com as imagens que fotógrafos em todo o mundo produziram nos últimos 100 anos utilizando a lendária câmera.

Leitz Camera

Em 1914 o engenheiro Oskar Barnack (1879-1936) produziu o primeiro modelo operacional da Leica (acima), conhecido como Modelo Ur. Mas ela só seria lançada comercialmente em 1925 com modelo abaixo, a Leica I.  O lançamento foi em uma feira em Leipzig e foi um sucesso imediato.

© Kameraprojekt Graz 2015 / Wikimedia Commons

 

Ela usava filme 35 mm, perfurado dos dois lados, originalmente desenvolvido para o cinema e que depois se popularizou por muitas décadas como um formato padrão para fotografia. Porém, havia uma diferença importante: no cinema, na filmagem e na projeção o filme está na vertical, o formato (sempre paisagem) é 18 x 24. Como na câmera a tira de filme corre na horizontal, foi possível ampliar o tamanho do quadro para 24 x 36 mm. Isso é sempre lembrado como uma ideia muito engenhosa de Oskar Barnack pois uma empresa de microscópios, no caso a Ernest Leitz, em Wetzlar, onde ele trabalhava, não poderia ter a pretensão de iniciar em um mercado maduro e disputado um novo formato de filme fotográfico.

Dos arquivos da Ernst Leitz e presente na exposição, uma foto de Oskar Barnack em sua mesa de trabalho.

Mesmo aproveitando o filme existente o movimento foi ousado pois sendo o quadro tão pequeno ele ainda demandava um ampliador, em um tempo em que o grosso das impressões era feito por contato. Era portanto uma mudança bem radical na forma de se encarar a fotografia como um todo. O que as Leicas têm de especial além do formato do filme é simplicidade e precisão. O corpo com as laterais arredondadas encaixa-se perfeitamente entre as mãos. Polegar e indicador caem exatamente onde precisamos deles. Ela vira realmente uma extensão de nossos olhos.

Uma timeline na exposição mostra os principais nomes e lançamentos desde a fundação da Ernst Leitz. Uma vitrine logo em frente apresenta ao vivo os principais modelos. Desde a primeira até as digitais recém lançadas.

Na minha opinião o auge do conceito foi atingido com as Leica III (as duas mais próximas na foto abaixo). Elas guardaram o básico do design original mas com a adição de uma gama maior de velocidades, sincronismo para flash, lentes melhores e acabamento mais durável. Para muitos, as M (do centro ao fundo) seriam o verdadeiro ápice pois incorporam o telêmetro dentro do visor entre outras vantagens.

Praticamente ao mesmo tempo da Leitz muitos outros fabricantes lançaram câmeras 35 mm. Algumas tornaram-se também icônicas como a série Retina da Kodak,  iniciada em 1934. Porém, as Leicas sempre tiveram uma excelência de desenho e manufatura que se refletia nos resultados (e também no preço). Na exposição são mostradas várias fotos e vídeos documentando as instalações, a fábrica e funcionários. Elas corroboram bem a lenda de uma empresa perfeccionista e orgulhosa de seus produtos.

Preparação de lentes para receber o coating

 

Vista da área de montagem das câmeras

 

 

O novo gesto fotográfico

Poster desenhado por Ludwig Wohlwein

Existiam muitas câmeras portáteis antes da Leica, em especial as do tipo caixa como as Brownies da Kodak ou Box Tengor da Zeiss Ikon. Mas elas eram despretensiosas no que diz respeito à qualidade final da imagem e recursos. A Leica veio para servir tanto ao amador dedicado como ao fotógrafo profissional. Elas vieram para substituir as câmeras de médio e grande formato nos casos em que cópias muito grandes não seriam necessárias e também quando não haveria razão para se movimentar o plano da lente em relação ao filme ou vice versa. Caso em que as view cameras, com vidro despolido, são um imperativo.

A mostra em Madri é enorme com vídeos, documentos, câmeras, e algo como 200 fotografias, muitas e muitas já parte da memória coletiva. Vou reproduzir algumas com a ressalva de que foram realizadas da própria exposição, com câmera na mão e luz ambiente, isto é, não são boas reproduções, apresentam reflexos e distorções de gama tonal. Servirão apenas para referência e para dar uma ideia da exposição mais do que da foto em si. Também não vou entrar aqui nas questões sociais ou de contexto das fotografias e proposta dos fotógrafos. O objetivo é mais de relacionar as características da câmera com uma certa estética que ela possibilitou e apropriou para si.

Anton Stankowski (1906-1998) - Zurich, 1932

Anton Stankowski (1906-1998) – Zurich, 1932

O percurso da mostra segue uma ordem cronológica dividida em períodos e características que podemos aproximar de algo como estilo ou temática. O que transparece claramente logo de início é uma vontade de se fazer tudo que tripé, filmes em chapa e máquinas grandes não permitiam. Por exemplo, câmeras de fole, portáteis ou não, costumam até trazer um nível de bolha incorporado como que dizendo: “mantenha a linha do horizonte na horizontal”. Normalmente têm também um movimento de subir ou descer a lente que quer dizer: “mantenha as linhas verticais na vertical”. Com a Leica, os fotógrafos descobriram o terceiro ponto de fuga ou até aboliram os pontos de fuga e deram boas vindas às diagonais de todos os tipos.

Hans Saebens (1895-1969) – 1950

Fotografar de dentro de um barco e conseguir uma boa composição hoje nos parece algo banal, mas com certeza maravilhou muita gente na época.

Lothar Rubelt (1901-1990) – 1930

Uma foto como essa, produzida e estudada, poderia em princípio ser realizada em médio ou grande formato e até permitiria uma ampliação maior se assim se desejasse. Porém, a velocidade, tanto do obturador para fixar o movimento como a rapidez de se avançar o filme, ficariam comprometidas em uma câmera de formato maior com filme em chapas. Fotos de ação ganharam uma nova dimensão com a introdução da Leica.

A ideia de “momento decisivo”, tão importante no trabalho de fotógrafos como Henry Cartier Bresson, não seria possível sem a praticidade da Leica.

Ramon Massats (1931) – foto de 1960

Momento decisivo não é apenas o instante do disparo, é na verdade uma combinação de disparo com enquadramento. Apenas uma câmera com visor, direto ou monoreflex, permite ao fotógrafo permanecer compondo a foto o tempo todo, antes e depois do click, acompanhando a ação, para então obter um “momento decisivo” que não seja comprometido por uma composição infeliz.

Alexander Rodtschenko (1891-1956) – Jornalista Georgi Petrussow na Praça Vermelha, Moscou – 1936

Impossível se imaginar o foto jornalismo sem as Leicas. É verdade que muitos fotógrafos, especialmente americanos, adoravam suas Graflexes: formato 4 x 5, visor esportivo, muitas vezes com flash bulb e diafragma bem fechado, então a regra era disparar primeiro e compor depois no laboratório. Com as Leicas, sem muito espaço para recortar o quadro pequeno e a vocação para luz ambiente, exigia-se uma estratégia mais apurada.

 

Alberto Korda (1928-2001) Che Guevara 1960.

 

Nick Ut (1951), Kim Phuc Napalm – 1972

Chama a atenção na exposição o número de fotos famosíssimas realizadas com Leicas. A imagem da garota nua correndo da nuvem de Napalm é uma delas. É interessante que justamente na guerra do Vietnã a Leica já disputava terreno com a tecnologia que virtualmente a substituiria: a das câmeras monoreflex, pois igualmente importante entre os fotógrafos de guerra foi a praticamente indestrutível Nikon F.

René Jacques (1908-2003), 1932

A foto acima, embora seja uma imagem muito bonita, é quase um contra exemplo do uso da Leica. Em fotos a uma distância muito curta ou com objetivas longas o uso de câmeras de visor perde muito para as monoreflex nas quais o que se vê é a própria imagem que recebe a lente. A Leica tem ótimas objetivas de 90 mm, 135 mm e mais. Porém, o seu uso pede um visor externo, com correção de paralaxe e muito da fotografia rápida e espontânea fica inviável. A série M contornava isso com o visor da própria câmera adaptando-se a algumas situações. Mas isso era como que apenas aperfeiçoar um problema insolúvel pelo próprio conceito das câmeras de visor.

A foto acima foi talvez a única da exposição com um rosto enchendo o quadro ou algo equivalente. A Leica é uma excelente câmera, talvez a melhor 35mm, para objetivas de 50 mm ou menos. Praticamente todas as grandes fotos realizadas com ela o foram com essas focais que se comportam realmente como uma extensão do olhar do fotógrafo. Esse fato se comprova quando se fotografa mantendo os dois olhos abertos, um no visor e outro por fora acompanhando a cena. Não há conflito de proporção entre as duas imagens. Com o visor mais claro que o de uma monoreflex e que não fica cego no momento da fotografia, somando-se ainda um obturador silencioso, discreto, a Leica encontra de 2 ou 3 metros até o infinito o seu território ideal.

Porém, dito isso, alguns fotógrafos criaram modos de se chegar bem perto do fotografado.

Mark Cohen (1943), fotos realizadas nos anos 70.

Esse é o caso de Mark Cohen. Havia na exposição alguns vídeos de entrevistas com fotógrafos. Um deles mostrava Mark Cohen usando uma Leica com uma grande angular (provavelmente 35 mm). O fotógrafo trazia a câmera na mão direita e um pequeno flash ligado por um cabo na esquerda. Mesmo havendo luz do dia ele usava o flash. Graças a ele, podia escolher um diafragma bem apertado e com a angular garantir uma boa profundidade de campo. Aproximava-se então das pessoas na rua em passos firmes como um batedor de carteiras dando o seu bote. Em um movimento contínuo colocava a câmera bem perto delas, sem olhar no visor, abria os braços e posicionava o flash, em geral lateralmente. Clicava e continuava andando sem interrupção, sem olhar para sua vítima, como se nada tivesse acontecido. Era tão rápido que as pessoas, mesmo percebendo o que acontecia ou o que já acontecera, não mostravam reação alguma. Outras interagiam e achavam divertido. É claro que essa ação mostrada no vídeo ocorria quando havia uma equipe filmando o próprio fotógrafo, isso talvez criasse outra configuração ao evento todo. Mas a produção de Mark Cohen é tão grande com esse procedimento e seu depoimento tão convincente que provavelmente o vídeo é mesmo uma boa amostra de sua prática.

Dr Mehemed Fehmy Agha (1896-1978), década de 1920

A série de Mark Cohen era dos anos 70. Se recuarmos mais, parece que havia uma ingenuidade ainda maior das pessoas com relação à figura e ação do fotógrafo e à indiscrição possibilitada a câmeras como a Leica. Difícil dizer hoje se as pessoas não notavam ou não se importavam, mas muitos clicks “roubados” por fotógrafos das primeiras décadas da fotografia instantânea não me parecem que seriam vistos como de muito bom tom hoje em dia. A foto acima pode ser um exemplo disso.

Havia na exposição uma parede dedicada a fotografia de moda. Mas esta é uma outra área onde não me parece que a Leica tenha sido muito solicitada. Talvez fosse a companheira de fotógrafos para fazer bastidores ou um trabalho pessoal entre uma sessão e outra de fotos realmente editoriais. Câmeras de médio formato como a Rolleiflex e mais tarde a Hasselblad eram provavelmente mais adequadas, mais flexíveis, à sequência de trabalho que ainda passaria por editoração, inclusão de textos e destinadas à impressão em off-set.

Nobuyoshi Araki (1940), serie love by Leica,  anterior a 2006

Única presença da fotografia de nus, esta parede do fotógrafo Araki mostrava imagens de uma série chamada “Love by Leica”. Não creio que a Leica ou qualquer outra câmera de visor tenha sido a primeira escolha de fotógrafos especializados em nú. Provavelmente o grande ou médio formato,  pela capacidade de render modelados mais ricos, é que detém essa supremacia. Mas fotos como as de Araki, têm um pouco essa característica de “diário íntimo”, não são nus no gênero escultórico, idealizado, como se fosse uma pintura classicista. Toda vez que se resvala para esse lado mais invasivo, realista ou documental, aprendemos a ver as imagens produzidas pela Leica como mais as adequadas para substanciar o conceito.

A última secção da mostra tem o título “Fotógrafo como autor: anos 80 até hoje”, fala do quase desaparecimento da fotografia comissionada por agências e imprensa com a iniciativa passando então para o próprio fotógrafo em primeiro lugar. Aumenta a presença da fotografia em museus, galerias de arte, coleções corporativas e isso irá criar um novo ambiente e novos projetos. Embora seja uma exposição da Leica, me parece óbvio que nesse novo cenário, não obstante ela continuar sendo uma excelente câmera, há uma certa perda de identidade se compararmos o quão determinante o gesto que ela inaugurou foi nas primeiras décadas de seu lançamento. Há uma certa coerência estilística nas imagens da primeira metade da exposição, mesmo entre fotógrafos tão diferentes, que se dilui bastante quando chegamos ao seu final.

Jeff Mermeinstein (1957) New York – anos 90

 

Francois Fontaine (1968) – 2012

 

Bruce Gilden (1946), portraits – 2013

Bem, esta foi uma pequena resenha para uma grande mostra. É possível se comprar o catálogo na Amazon. Creio que seja um documento muito útil para quem estuda fotografia. O meu deve chegar em breve. Em Madri, nas livrarias e nos locais de exposição, estava completamente esgotado. O projeto como um todo é uma bela iniciativa da Leica Camera AG e conta com curadoria de Hans-Michael Koetzle. Em Madri a exposição vai até 10 de outubro de 2017. Provavelmente irá ainda excursionar por outras cidades e é algo a se acompanhar. Eu a visitaria novamente com certeza se tiver a chance.

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