Todo mundo já viu em filmes aquele fotógrafo com o flash que queima alguma coisa e que parece fazer mais fumaça que luz. Esse era o flash em pó. Utilizava um metal e um oxidante para fazer algo parecido com pólvora queimada em aberto. Isso foi usado dos primórdios da fotografia até quase a metade do século XX. Depois, foi felizmente substituído por meios mais limpos, práticos e seguros. Porém, a quantidade de luz que tais misturas produzem, é alguma coisa que não deixou de ser interessante. Então, com planejamento, cuidado e muito bom senso, é possível se experimentar a luz em pó, em algumas situações. A fonte na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, na foto acima, estava completamente às escuras, chão de pedra, nada inflamável por perto, rua vazia… e apenas uma colherinha de café fez tudo isso! Não é algo para um fotógrafo amador que se preze ignorar.
Este post está na secção “faça você mesmo”. Mas mesmo assim vale a pena uma introdução histórica pois ao final, aqueles querendo experimentar o flash em pó terão que improvisar algum aparato para realizar a sua queima. Nesse sentido, vale a pena ver o que se usava e os problemas que se tentava resolver. Isso com certeza dará inspiração para gambiarras mais interessantes.
Assim era antigamente
O flash-powder, ou lumière-éclair no francês, foi provavelmente trazido para a fotografia através do teatro e da cenografia onde era parte dos efeitos especiais. Foi utilizada por fotógrafos profissionais pois os filmes eram lentos e em muitas situações não se podia contar com luz natural. Mas o flash-powder, flash em pó, realmente se popularizou com a introdução das máquinas como a Kodak Brownie Nº2, 1901, destinadas ao grande público, utilizando filmes 120, com uma claustrofóbica abertura de apenas f16. Fotógrafos profissionais ainda podiam se dar ao luxo de usar lentes como a Heliar ou Euryscope , com aberturas chegando até f4,5. Mas o fotógrafo de final de semana em geral precisava de mais luz, muito mais.
Para seu socorro vieram muitas empresas fabricando aparelhos e misturas para o flash em pó. A própria Kodak ofereceu uma enormidade de opções, entre elas o Kodak Amateur Flash Outfit. O livreto ao lado, dá um panorama do que havia disponível no início do século XX. Não há data na publicação mas pelo tipo de aparelhos que ele apresenta, deve ter sido por no primeiro quarto do século.
Ele classifica em três tipos os dispositivos para uso do flash em pó. Um primeiro grupo é daqueles que utilizam uma chama produzida por uma lamparina a álcool e algum dispositivo derrama ou joga o pó sobre essa chama. Este imediatamente se inflama e há um efeito, como acontece com a pólvora, em que depois de uma primeira centelha o pó induz a própria queima de forma imediata. A diferença com a pólvora é que no caso do flash em pó a queima é considerada lenta e produz muito calor, muita luz, mas não há explosão propriamente dita.
Um modelo nesse conceito é a Lampe Météore. Na ponta à esquerda está a mecha com álcool, no centro uma mola sobre a qual se deposita o pó e à direita um gatilho que libera a mola no momento desejado. O formato em pistola é sem dúvida bem sugestivo e não deixa dúvidas: esse flash é uma arma.
Para o profissional, um fabricante chamado Clifford oferecia uma Flash Light Machine, com nada menos que 18 lamparinas à álcool e uma largura de dois metros. O pó era depositado em uma calha acima da chama e no momento oportuno essas calhas giram e derramam o pó sobre as chamas produzindo uma luz além de muito forte, mais difusa, pois são 18 fontes. O autor do livro pondera que esse sistema de ter chamas e álcool tão perto de pó inflamável deixa a desejar em termos de segurança.
A segunda categoria de equipamentos para flash em pó é aquela na qual o pó é depositado sobre uma calha e a ignição acontece a partir do centro. A ignição é produzida por uma única chama que se aproxima da calha por um mecanismo, ou pelo uso de um dispositivo com ferro-cério, que é a pedra de isqueiro. Ao ser friccionada ela emite fagulhas que acionam o processo da queima. Este é o caso de modelos como a Lampe-Éclair Excelcior e uma genérica Lampe de poche, (modelo de bolso), ilustradas acima. Essas são opções muito mais seguras do que derramar pó sobre uma lamparina acesa com álcool. Mas o autor diz que o uso da pedra de isqueiro não estava ainda muito bem resolvido pois o calor da queima facilmente estragava o mecanismo acionador e a própria liga ferro-cério.
A terceira categoria é aquela que utiliza um detonador elétrico. Uma corrente sobre um filamento (aquele que aparece entre as duas pontas metálicas no centro da plataforma) torna-o incandescente e isso desencadeia a reação de combustão do flash em pó que deve ser previamente colocado sobre ele. Com esse tipo de dispositivo também o sincronismo fica muito mais fácil pois o momento exato do clarão torna-se mais previsível.
A luz do flash em pó tende a ser muito dura pois a fonte tem dimensões reduzidas. Algumas criações foram na direção de introduzir o que hoje chamamos de hazy light. Este é um difusor que deve receber boa parte da luz que vem da queima do pó e redistribuí-la sobre o assunto fotografado de forma mais suave.
O Simplex, ao lado, faz exatamente esse papel. Um tecido posicionado um pouco abaixo do queimador irá iluminar, como um hazy light, aquilo que estiver à direita abaixo do aparato. Isso dá uma informação importante sobre a queima do pó, tanto do ponto de vista da técnica como da segurança. A luz não vem exatamente de onde o pó está. Ele não queima parado no local onde foi colocado. É por isso que ele pode ficar em uma calha ou recipiente, alguns até fundos, pois no momento da queima ele sobe e forma uma nuvem de luz logo acima de onde se iniciou a combustão.
Este outro modelo, também da Excelsior, resolve dois problemas de uma vez só. Colocado dentro de uma espécie de balão o queimador fica confinado entre quatro paredes de tecido. Duas delas são reflexivas por dentro. As outras duas fazem a difusão da luz.
Uma vantagem desse modelo é que ele aprisiona a fumaça. A queima produz realmente muita fumaça. Pode não parecer, se você estiver em uma externa, mas eu já fiz fotos com flash em pó em minha sala e posso dizer que a fumaça é farta. Em um primeiro momento, ela se espalha pelo teto pois há muita liberação de calor e ela está bem aquecida. Mas logo a temperatura cai e com ela a fumaça.
Com o Simplex, o autor do livreto explica que depois de cada clique você pode ir para fora de casa e esvaziar a fumaça do saco pela abertura que ele tem embaixo. Isso dá ideia de como ela é espessa.
Não há nenhuma informação sobre as dimensões desse Excelsior, mas minha pequena experiência com flash em pó me diz que ele deve ser bem grande. Com uma quantidade de pó como uma colher de café a queima pode chamuscar qualquer coisa até uns 30 cm de distância e o calor liberado é enorme, como já foi dito. Então, por medida de segurança e para não iniciar um incêndio, é bom deixar livre pelo menos um raio de uns 60 cm em todas as direções a partir do ponto onde a queima irá ocorrer. Isso é proporcional à quantidade de pó e, em todo caso, em situações internas, é melhor ficar nas quantidades mínimas.
Os fabricantes de equipamentos fotográficos sempre estiveram preocupados com praticidade e em comunicar um certo estilo de vida para os amantes da fotografia. É assim que uma ilustração mostra como é fácil levar o Excelsior para qualquer lugar sem que a elegância do fotógrafo seja comprometida.
Quanto às situações em que o flash em pó mostrava suas vantagens, uma vez contornados seus riscos inerentes, temos sobretudo as cenas justamente internas, noturnas e especialmente em ambientes grandes como teatros e salões. Para fotos de grandes grupos e em eventos cuja data e hora já estavam de antemão fixadas, o fotógrafo não podia contar com o bom tempo e uma boa iluminação natural. Às vezes, mesmo com essa condição, podia acontecer que a posição da câmera em relação ao seu assunto não seria favorável e um flash de enchimento podia se fazer necessário.
É difícil se falar em potência com tecnologia tão rudimentar, mas eu já fiz foto com flash em pó durante um dia de sol e é fato que se pode notar claramente que a mágica colher de café dá uma boa suavizada nas sombras para assuntos em torno de 4 metros de distância.
Nesse mesmo livreto, La pratique de la photographie à lumière éclair, há uma foto que ilustra o uso do flash em pó. É realmente muito difícil se imaginar como, com os filmes lentos do inicio do século (equivalentes a ASA en torno de 10 ou 20), uma foto de um palco de teatro como esse poderia ser feita com outro tipo de iluminação.
Mas, como sempre, o gênero onde os fabricantes de mais colocavam suas apostas, era o retrato familiar. Abaixo uma página em uma publicação da Kodak intitulada: Comment obtenir de Bonnes Photographies – Guide de l’Amateur Photographe (Como obter boas fotografias – guia do fotógrafo amador). Infelizmente não tem data marcada, mas pelos equipamentos que apresenta é certamente início do século XX também.
O texto diz o seguinte: 1 carga dupla (1 dado [um cubinho do tamanho de um dado]) de flash em pó Kodak colocado a 2 m do retratado e a 2,5 m de altura. Refletor em tecido branco. Objetiva protegida por um cartão durante a exposição [fora ser uma boa prática, não havia lente anti-reflexo ainda, e então tornava-se uma prática obrigatória]. Paredes em cor neutra. Kodak munida de uma lente para retratos. Diafragma U.S. 8. Retratado a 1m da câmera.
A lente para retratos era uma lente de aproximação pois as máquinas, em especial as tipo caixa como as Brownies, tinham o foco fixo na distância hiperfocal e não a 1 metro. Diafragma U.S. 8 equivale em números f, de hoje, a f11,3. Vamos analisar então: quem é que, usando, para não dizer sofrendo, com um filme com menos de 20 ASA, com um diafragma f11, vendo um retrato desses na página do livro, não iria correndo comprar o tal poudre-éclair? Sim, ele fazia toda a diferença.
Preparando flash em pó
Existem muitas receitas, que são todas variações sobre uma ideia básica de colocar juntos um metal e um oxidante. O metal é o combustível e normalmente utiliza-se alumínio ou magnésio. O papel do oxidante é fornecer oxigênio a uma taxa que o ar não poderia. Uma vez que se tenha uma centelha ativada por uma chama ou descarga elétrica ocorre uma reação em cadeia e o metal se consome em frações de segundo.
A fórmula mais comum e utilizada por fotógrafos amadores é a que consiste em apenas dois componentes: pó de magnésio (o Mg da tabela periódica) e Nitrato de Potássio (KNO3). O modo de preparar é simple, basta misturar os dois a seco em partes iguais em peso.
O magnésio é um pó cinza como limalha de ferro e o Nitrato de Potássio é um pó branco. Quanto mais fino o pó melhor, em especial o Nitrato de Potássio, idealmente, deve ser fino como farinha para ter a melhor performance. Para comprar, é preciso procurar um revendedor de reagentes químicos. Não é problema comprar em quantidades pequenas. Esse frasco de magnésio na foto é de apenas 25g. O ideal é não estocar a mistura pronta. Faça-a logo antes do uso, no dia ou na véspera, pois o pó pronto com o tempo perde suas características. Eu uso dois vidrinhos âmbar pequenos e coloco no máximo 1/3 do volume de magnésio e nitrato de potássio em cada um. Depois eu verto o conteúdo de um no outro e vou girando lentamente até misturar de forma homogênea.
Para acender eu uso um pavio lento, são essas hastes vermelhas que aparecem na foto. Existem dois tipos: pavio rápido e lento e são encontrados em lojas de fogos de artifício. O rápido é instantâneo, você acende de um lado e já chegou do outro. Quanto ao lento, a chama corre mais ou menos 1 cm por segundo, mas isso deve variar de fabricante para fabricante. Uso um isqueiro comum para isso.
Existem pavios elétricos mas nunca utilizei. O pavio de queima lento eu uso da seguinte maneira: acendo um que vá durar uns 10 segundos sendo que na outra ponta está o flash em pó. Esse é o tempo para eu alcançar o cabo disparador e ficar atento para disparar no momento certo. Parece estranho mas dá certo. Sobre o tempo para sincronismo veja o post Agfa Flashlight Lampe pois lá há uma consideração mais aprofundada sobre o tempo da queima.
Você pode criar também outros tipos de sincronismo com o pavio rápido. Ele pode ser aceso eletricamente e em seguida acender o flash em pó, caso o acendedor elétrico não seja suficiente para dar início a processo com a mistura magnésio e nitrato de potássio. Embora ela seja bem inflamável, já notei que não é qualquer fagulha que detona a queima.
Um aparato para o flash em pó
Isso vai depender completamente pelo seu gosto por construir coisas e mais que tudo quanto quer que elas durem. Uma lata qualquer pregada em um sarrafo já serve, mas, irá durar talvez uma única vez, pois derreterá com o calor da primeira queima. Eu fiz uma bricolage com coisas que já tinha em casa. Se você for do tipo de acumular bugigangas já deve ter tudo o que precisa também.
A peça na foto acima foi montada com:
- Uma chapa de aço inox de 20 x 30 cm, um pouco espessa, algo como meio milímetro
- Uma cantoneira em L
- Um adaptador de máquina fotográfica com rosca grande para pequena
- Uma porca
- Uma cabeça de tripé antiga.
A frente tem uma dobra para colocar uma quantidade de flash em pó e um furo no meio pelo qual o pavio é inserido ficando com uma ponta para trás e a outra dentro da mistura.
O funcional desse “modelo” é que ele pode ser montado em um desses stands de estúdio fotográfico e isso é bem prático e seguro. A boa fixação do aparato para a queima do pó é um item de segurança que não pode ser negligenciado. Pergunte-se sempre: isso pode cair? E se ventar? Tem crianças por perto? Alguém distraído pode esbarrar?
Mas veja como a queima vai consumindo tudo. A cabeça de tripé era novinha, niquelada e a chapa de aço parecia indestrutível. Mas tudo que entra em contato com as fagulhas, mesmo que com alguma distância, é bastante afetado.
A “parede” alta que sobe por trás da calha é alguma coisa que achei que ficaria boa para criar uma área mais protegida atrás, em geral onde fica a câmera e o fotógrafo, e também como rebatedora da luz do flash. Vi esse conceito e gostei no aparelhinho portátil da Agfa que citei logo acima.
A foto da fonte em Tiradentes foi feita com esse stand usando o pavio lento e não mais que uma colher de café de flash em pó. Como estava escuro, não precisei me preocupar muito com sincronismo e dei um tempo mais longo para ter certeza. Utilizei uma Crow Graphic 23 com adaptador para filme 120. A abertura foi f11.
Sobre exposição, número guia, distância ou qualquer outro meio de prever quanta luz irá gerar a queima do flash em pó, é impossível prever. O ideal é fazer testes com o seu aparato e a sua mistura. Depois, para cada conjunto, pode-se contar com uma certa consistência.
Nesse ponto, acredito que hoje em dia esse é o tipo da tecnologia antiga que vai bem com a tecnologia nova, digo a da fotografia digital. Pois fica muito fácil ver o resultado na hora e ajustar a abertura da lente, tempo, distâncias ou o que for, e refazer na mesma hora.
Uma última palavra é a respeito de segurança. Isso não é algo para se fazer sem muita preparação e prevendo tudo o que pode dar errado para tomar antecipadamente as medidas para que não dê. Era alguma coisa feita corriqueiramente por amadores no início do século XX, não pode ser que alguém, 100 anos depois, não possa repetir sem causar acidentes. Algumas regras básicas:
- Nunca misture grandes quantidades. Primeiro porque você não vai usar, segundo porque estraga e terceiro por que havendo um acidente quanto maior a quantidade maior o estrago.
- Nunca misture com mexedor, colher, pauzinho e nada do tipo. Use um recipiente maior e vá girando e movendo para que o pó se misture de forma solta e sem ser pressionado
- Use óculos de segurança.
- O maior risco de acidentes, como acontece com fogos de artifício, deve ser a má fixação da peça que irá sustentar o flash em pó para a queima. Cuide para que esteja bem preso. Considere se o vento apresenta perigo e mantenha o aparato fora da área e alcance de pessoas desavisadas. Não deixe nada de que você goste a menos de 1 metro de distância.
- Queime um pavio sozinho para ver como é, queime um pouquinho de flash em pó em no chão, sobre uma pedra, madeira ou tijolo. Teste cada coisa e etapa que puder testar antes de realizar a sequência completa.
Diferente de fogos de artifício o flash em pó não produz explosão e nesse sentido é menos perigoso, porém, novamente, são temperaturas muito altas, é um processo rápido e sem volta e é muito calor que se desprende da queima da mistura. No mais, divirta-se.
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Oi Wagner, vi o artigo falando sobre iluminar grandes áreas com flash e lembrei desse fabricante aqui, uma opção mais moderna mas bem interessante para iluminação de grandes proporções.
http://www.meggaflash.com/index.php/meggaflash-bulbs/flashbulb-slow-peak-pf300
Abraços!
Que matéria bacana e esclarecedora. Eu apesar de ter conhecido o pó de magnésio de uma maneira bem desastrosa, no laboratório de química do colégio de padres que estudei, onde o professor falou para os alunos que não poderíamos misturar dois componentes a ele que explodia, foi o mesmo que pedir pra fazer, abrimos um rombo no teto do laboratório kkkkkk
Interessante Wagner , gostei da historia e sua pesquisa para trazer esse post para nós . Obrigado