Olha o passarinho

Creio que os millennials nem ouviram falar. Mas, como sou do século passado, eu lembro bem que quando criança ouvi muitas vezes a expressão “olha o passarinho”. Era a frase feita, quase uma senha, com a qual os fotógrafos alertavam os fotografados. Era o sinal de que todos deviam se ajeitar na pose pois o click viria em seguida. Eu achava que era apenas uma brincadeira, já que não se via passarinho algum. Era o mesmo que dizer olhem para a câmera, só que de um jeito engraçadinho dentro de um jargão que todos conheciam.

Mas recentemente tive a surpresa de conhecer o tal passarinho. Sim, ele existiu e foi usado para fixar a atenção, especialmente de crianças, para que o fotógrafo pudesse disparar o obturador enquanto seu retratado estivesse quieto “olhando o passarinho”. Isso devia ser especialmente útil em estúdios quando se fotografava com filmes em chapas ou placas de vidro. O processo entre um clique e outro é mais demorado e não permite várias fotos em sequência rápida. Fotógrafo e fotografado precisam estar sincronizados e o passarinho era o instrumento dessa sincronização. Abaixo, o passarinho montado em uma câmera Excelsior no formato 13×18. Esta seria uma câmera típica para se precisar do passarinho. Veja o vídeo no final da página para entender o passo a passo para cada fotografia.

Eu vi, pela primeira vez, este pequeno gadget fotográfico aparecer um uma casa de leilões especializada em fotografia. Fiquei surpreso de saber que de fato fotógrafos utilizavam um passarinho mecânico, capaz até de cantar, funcionando assim como uma armadilha para capturar a atenção de seus retratados. Dei um lance, mas não foi nessa primeira vez que consegui meu exemplar. Foi somente na terceira tentativa que consegui fechar a compra por um preço razoável. Foi o equivalente a 60 USD. Ele veio da Austrália e chegou muito sujo porém inteiro. Faltava apenas a base, mas isso é muito fácil de improvisar. De resto apenas uma limpeza colocou-o em forma novamente.

É muito difícil encontrar informações sobre o passarinho. Procurei por estúdios ou fotógrafos que poderiam dar um testemunho sobre seu uso, talvez uma foto de um making-of, mas o que encontrei foi um site chamado “Smile for me toys” (brinquedos sorria para mim), com algumas informações interessantes que traduzo logo a seguir.


Quando começou a frase “olha o passarinho”? Tal como acontece com todas as tradições consagradas pelo tempo, uma frase pode crescer ao longo dos anos e ser adotada pelas gerações subsequentes até atingir uma eventual extinção. Este passarinho está prestes a ser extinto? Está definitivamente na Lista de Espécies Ameaçadas, então… quando a frase começou a ser usada? E por quê?

Os primeiras menções de pássaros registrados [em estúdios fotográficos] datam de julho de 1879.

Uma edição do Photographic News continha um artigo sobre um homem chamado C.W. Davis que vinha treinando um canário vivo para cantar em sua direção para relaxar o retratado que naquela época teria que permanecer parado em uma posição fixa por muitos minutos enquanto a câmera tirava a foto.

Os empresários deviam estar por dentro do problema porque a matéria prossegue dizendo que “logo os fotógrafos puderam comprar um pássaro mecânico que cantava quando um bulbo pneumática era apertado e a frase ‘olha o passarinho’ se tornou um comando nas sessões de retratos”.

A patente número 1.445.332 em (1923) pertence a Oscar Schwarzkopf rotulado como um cantor de pássaros de brinquedo. Um Victory Canary Songster de latão também parece ter sido patenteado na mesma época e a The Risdon Manufacturing Company de Naugatuck, Connecticut, produziu suas versões por mais de 25 anos, como a mostrada aqui nesta página.

(Quem sabe quantos sorrisos esse garotinho capturou e quantas fotos de bisavós quando criança ele fez parte?)

À medida que as câmeras se tornaram mais portáteis, sem tripés e capuzes volumosos e os processos mais estáveis ​​e consistentes, os passarinhos de latão começaram seu declínio. Novos acessórios começaram a surgir para ajudar os fotógrafos em suas sessões fotográficas.

Bancos, adereços, cenários e novas técnicas de flash começaram a ajudar a impulsionar esta indústria nova e em evolução. Enquanto os próprios passarinhos estavam desaparecendo, a frase continuava em uso.


Procurei o artigo mencionado na The Photographic News, mas não achei cópia digitalizada de 1879. O que encontrei foi a citada patente americana de 13 de fevereiro de 1923, em nome de Oscar Schwarzkopf, da firma Victory Sparkler & Specialty Co. com o título Toy Bird Songster. O desenho nessa patente corresponde exatamente ao passarinho que tenho, mas não posso afirmar que seja dessa marca. Talvez seja da The Risdon Manufacturing Company, citada acima e é muito parecido também. Provavelmente, por sua simplicidade construtiva, pode ter sido copiado ainda por outras firmas, fora ou mesmo dentro da abrangência da patente.

Esta é a página do pedido de patente que mostra os detalhes do passarinho cantor. Apesar de simples ele é muito engenhoso e produz um efeito surpreendente no seu cantar.

Quando o ar entra pelo tubo 29, soprado pelo fotógrafo ou através de um bulbo de borracha, ele se separa em dois fluxos. O que vai para cima irá projetar uma haste, um pequeno pistão, para movimentar a cauda e o bico do passarinho, pois estes são articulados. O fluxo que vai para baixo irá acionar um apito (27 no desenho). O reservatório que forma a base do gadget deve estar cheio de água. O que acontece é que a pressão do ar faz com que o nível da água desça dentro do tubinho e a nota emitida pelo apito muda para um tom mais grave pois a coluna de ar vibrando dentro do tubo alonga-se e muda para uma frequência menor. Isso tem o efeito de gerar um autêntico “piu piu” cada vez que um pouco de ar é forçado pelo tubinho 29. É um efeito muito convincente que contorna o fato de que seria banal se fosse simplesmente um apito.

Uma coisa interessante é que no pedido de patente o autor não menciona nada relativo ao uso especificamente em fotografia. Lemos: “Esta invenção refere-se a brinquedos musicais e, mais particularmente, a melhorias em canários cantores feitos para imitar os movimentos de um pássaro cantando e produzir o gorjeio ou o trinado do mesmo. Um objetivo desta invenção é melhorar e simplificar canários de brinquedo para que os mesmos sejam práticos para produção em grandes quantidades e venda a preços comparativamente baixos.”

Encontrei também este pequeno anúncio direcionado a distribuidores. Fala em óperas, orquestras… mas nada de fotografia.

Isto indica que o canarinho dos fotógrafos pertence a uma categoria muito mais ampla e diversa, a categoria dos autômatos. Antes da eletrônica e dos microprocessadores, muitos mecanismos, simples como o canarinho cantor, ou extremamente sofisticados como esta senhora capaz de escrever uma carta, encantaram muitas gerações por sua engenhosidade e relativo realismo.

Museu Centre International de la Mécanique d’Art – Suiça

Provavelmente o canarinho foi apropriado pelos fotógrafos que a ele associaram o clichê “olha o passarinho”,  mas originalmente ele foi concebido apenas como mais um brinquedo do tipo que emula um ser vivo, um brinquedo que “faz alguma coisa”. No pedido de patente o autor até diz se tratar de “melhorias em canários cantores”, o que indica claramente que existiam outros “concorrentes”.

Abaixo, um vídeo que fiz, uma simulação, apenas para mostrar, para quem não conhece, o passo a passo para se fazer uma fotografia com filme em chapa ou placa de vidro. Espero que evidencie que no momento do clique o retratado poderá facilmente estar completamente desligado da ação, distraído com alguma outra coisa ou com seus pensamentos. É aí que entra o “olha o passarinho”.

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