Retrato popular, em paz com a fantasia

É riquíssima a exposição Retrato Popular, do vernáculo ao espetáculo em exibição no SESC Belenzinho desde 6 de maio e que termina 31 de julho de 2016. Primeiro por proporcionar o encontro de uma arte popular que se faz para o uso e consumo como arte pura e simples, como sistema simbólico, e outra que se considera mais informada por tentar se posicionar em algum lugar além daquilo que simboliza. Uma arte que se pretende um pouco auto-referente. No encontro é possível se ver artistas populares ensaiando os trejeitos dos artistas que se dizem contemporâneos, que se vêem fora das tradições locais e mais inseridos em uma tradição universal, e é possível também se ver estes últimos se apropriando da produção ou temas dos primeiros para insufla-los com leituras, sugeridas por rearranjos curatoriais e montagens, que seus próprios criadores, considerados ingênuos, não suspeitavam. Apenas isso já é curioso e vale a pena a visita. Mas vamos ao outro aspecto, mais interessante, que torna esta exposição um ponto de partida para uma reflexão sobre nossa relação com idealizações e realidades.

Hoje se fala muito em “beleza real”, um verdadeiro movimento que visa nos alertar para a tirania dos ideais de beleza propagados pelas imagens publicitárias. Essas que perversamente fazem com que as pessoas se sintam feias e consumam mais, sempre mais, tentando se igualar a um ideal impossível. Por essa linha de raciocínio, uma mulher toda esculpida com photoshop, ostensivamente colocada em uma capa de revista, torna-se uma ofensa pública. Enquanto isso, no retrato popular, mais especificamente na fotopintura, o cliente pede ao fotógrafo, em geral através de um vendedor, que o refaça, talvez com olhos azuis, sem manchas, rugas ou sinais na pele, com roupas que nunca teve, em casas luxuosas onde nunca morou, ou como personagem de uma história que nunca viveu.  Quando recebe a foto não se sente humilhado, diminuído ou ofendido ao constatar o enorme abismo entre imagem e realidade. Sente-se orgulhoso e se reconhece plenamente, a si mesmo ou a algum ente querido, naquela imagem.

Em entrevista realizada pelo SESC com Julio Santos, mestre em fotopintura que vive e trabalha em Fortaleza – Ceará, o artista usa várias vezes o termo dignidade. Diz que as pessoas o procuram em busca de uma dignidade que só se concretiza quando ele usa de sua capacidade de representa-las na fotopintura. As formas pelas quais essa dignidade se expressa refletem as convenções de nosso tempo, são os adereços e aparências que significam que aquele que os porta é uma pessoa digna. Entram aí o terno e a gravata, cordões e crucifixos de ouro, todos os símbolos do luxo e também a eventual eliminação das marcas do envelhecimento precoce, do sofrimento e das agruras de quem sempre viveu nas condições mais adversas. Aquilo que uma simples foto mostraria, não é mais que uma imagem deturpada pelos acidentes da vida. A fotopintura mostra como aquela pessoa realmente é, ou como ela seria, se apenas suas disposições internas, morais e espirituais pudessem ser captadas por uma lente, ou se a vida lhe tivesse sido mais amena e justa. É a fotografia realista, mas, da alma do retratado.

A exploração comercial dos ideais de beleza e dignidade, do belo e do bom, que sempre andam juntos em qualquer sociedade, é alguma coisa certamente condenável. Sua falha moral está em que se orienta mais a impedir a identificação com tais ideais ao não permitir que pessoas comuns sejam vistas na mídia portando seus símbolos. O alvo não consegue se aproximar de tais padrões a não ser consumindo, usando as mesmas marcas, mas frustra-se por continuar não se reconhecendo, não pertencendo ao mundo que a propaganda promete. Mas, ao mesmo tempo e ironicamente, ao perceber as pistas, elementos e convenções que simbolizam o que é ser bom e belo, o retrato popular apodera-se desses elementos e elabora sobre eles. O retratado se representa como ele ou seu familiar querido de fato são, em essência, não em aparência, mas através da aparência. Dessa forma o ideal não se apresenta como ameaça ou castigo, e assim conseguem viver em paz com a fantasia.

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Estas são algumas imagens da entrada da mostra. São fotografias, molduras e ambientes que, guardadas as imposições e estilo de um espaço expositivo contemporâneo, remetem ao modo como tais imagens se apresentam nas casas de quem usa fotopintura como tal. Embora seja impossível se saber em quais exatamente, em alguns retratos parece ser muito provável que a foto de base deve ter sido uma fotografia dessas de documentos como as 3×4 do RG. Isso mostra uma relação muito esporádica com a câmera fotográfica. A partir delas, garantida a verossimilhança com o retratado, todos os devaneios são permitidos.

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Aqui é uma montagem pouco ortodoxa em relação ao uso original da fotopintura. O curador, pesquisador e colecionador Titus Riedl reuniu várias fotopinturas originais em mosaicos onde para fugir da banal justaposição colocou algumas de ponta cabeça.

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A seguir alguns trabalhos do mestre Julio Santos. Recentemente seu estúdio incorporou o tratamento digital de imagens e isto introduziu um novo padrão que causa um certo estranhamento para quem está acostumado com o trabalho de pintura manual. Porém, a possibilidade de rapidamente localizar seu retratado em interiores de revistas de decoração ou outros cenários mais inusitados, parece estar valendo o esforço de uma adaptação visual a este novo tipo de acabamento. Paralelamente, a fotopintura original recebe seu atestado de arte agonizante e vai fazendo sua entrada nos museus. Há uma outra entrevista com o mestre Julio, também pelo SESC, em que ele fala, com muita emoção, desse seu encontro com o digital. Fala dele como o seu renascer.

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Não faz parte da exposição esta foto da esquerda que foi a base para a rainha à direita. Ela foi publicada na revista Fotografe de junho/2016 em matéria sobre a exposição e dá o crédito ao mestre Júlio.

Abaixo uma série de fotos de Tiago Santana, Crato – Ceará. Retratam o ambiente místico de Juazeiro do Norte, destino de Romarias. São fotos de um olhar refinado que preza o uso de metonímias visuais procurando os detalhes que revelam o todo, sombras que revelam os corpos e as apresenta à moda “obra objeto”, sem moldura, como que flutuando sobre a parede.
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As fotos a seguir são da dupla Luiz Santos e Tonho Ceará, que viajaram por muitas cidades do agreste, entre 2006 e 2008, com uma câmera lambe-lambe, retratando o povo. Registraram indígenas, ciganos, circenses, sem-terra, romeiros e bacamarteiros. Aqui, o retratado não é mais o cliente que encomenda e foto e o fotógrafo parece pensar mais no público culto e capaz de valorizar as tiragens e montagens fine-art que podem ser vistas na exposição.

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A exposição vai até 31/julho, é muito fácil chegar no SESC Belenzinho de metro descendo na própria estação Belenzinho e caminhando 10 minutos. A curadoria é de Valéria Laena, Titus Riedl de Rosely Nakagawa.

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  • Só hoje estou lendo esse texto sobre a exposição. Não lembro se você chegou a ir, mas essa exposição contou com uma imensa programação integrada, quando trouxemos vários fotógrafos ‘populares’ ao Sesc. Fui à Fortaleza para a gravação dos videos do Julio Santos que você comenta, e também à Juazeiro do Norte convidar os fotógrafos (lambe-lambe e monoculistas) para virem pra SP. Foi lindo. Seu texto sobre a mostra me deixou nostálgica… 🙂 Escrevi na época um artigo sobre a mudança do analógico ao digital nas fotopinturas do Julio Santos e como ele usa o cavalete como metáfora quando vai para o computador. 🙂

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