É fato que a imagem digital possui um estado em que é pura informação. Trata-se de quando está escrita na forma de arquivo, como sequência de bits. Porém, uma vez impressa sobre papel, ela não é menos física ou menos material do que a tradicional fotografia analógica. As semelhanças não estão só na finalização. Um sensor digital é uma grade que registra a incidência de luz em cada uma de suas células através de transformações físicas que nelas ocorrem. Da mesma forma, os haletos de prata espalhados na gelatina do filme também se alteram com a incidência de luz. As moléculas desses haletos são entidades inteiras e são também “digitais” nesse sentido. Simplesmente não as contamos, não as transformamos em sequência numérica a partir da leitura dos filmes, enquanto que o fazemos a partir da leitura dos sensores digitais. Enfim, se olharmos com suficiente detalhe, tudo na natureza é digital, nada varia continuamente, ou analogicamente. O que chamamos de analógico é simplesmente o que é tão grande e numeroso que não conseguimos separar em pedaços discretos, ou quantas – de quântico. Não há portanto uma diferença de materialidade, de “natureza” ou de “artificialidade” entre os dois processos. Os dois baseiam-se em fenômenos naturais que utilizam as alterações foto-sensíveis de um suporte como forma de registro. Os dois terminam em um objeto altamente estável composto em geral de celulose (papel) com pigmentos e/ou gelatina e prata oxidada.
Há sim uma diferença, mas esta encontra-se no processamento dessa raiz comum, em uma fase que é apenas intermediária: no digital conseguimos contar, transformar o fenômeno natural em informação, em descrição, e depois transformar essa informação em matéria novamente, enquanto que no analógico, nos limitamos a reproduzir a imagem fisicamente, como um carimbo luminoso, por contato ou por projeção. Na imagem como informação, no arquivo digital, o conceito de original perde o sentido. Arquivos podem ser considerados iguais. São como partituras para quem quiser tocar uma imagem. Como um livro para quem quiser ler um romance. Ninguém se preocupa em tocar uma certa música em uma partitura “original”, ou ler um livro no manuscrito do autor. Da mesma forma qualquer cópia de arquivo serve para qualquer impressor dar saída a uma fotografia. Isso, por si só, não deveria ser um drama. Não poderia ser a “morte da fotografia”, como já foi dito. Profissionais do meio poderiam aprender a conviver com esse fato a partir da experiência seus amigos na música e na literatura. Música continua sendo o que se ouve, literatura o que se lê e fotografia será sempre o que se vê.
Algumas perguntas me parecem mais interessantes a se fazer, do que ficar acusando ou lamentando a nova tecnologia. Em uma antropologia do presente poderíamos nos indagar: por que de repente as pessoas estão descobrindo uma materialidade na fotografia analógica e negando a mesma materialidade na digital quando esta pode, plenamente, lhes oferecer as mesmas qualidades museológicas de permanência para seus registros? Por que isso parece preocupar mais fotógrafos e pessoas do meio enquanto que o grande público, ao que parece, alegremente abandonou o filme e depois as câmeras e restringiu sua experiência com o fazer imagens ao celular? O mercado de celulares é uma substituição ou um acréscimo ao de câmeras dedicadas? Para uso doméstico, imprime-se menos imagens hoje do que no passado? Se estamos perdendo o interesse em imagens que permanecem, que se guardam como memória, se olhar a telinha do celular por um segundo é toda a exposição que aquela imagem terá, ou quando muito, uma breve existência enquanto afunda no poço da linha do tempo das redes sociais, não é por estarmos aprisionados em uma tecnologia que nos obrigue a isso. É uma escolha. Por que estamos fazendo essa escolha?
Sobre a imagem deste post
Essa foi uma brincadeira que surgiu enquanto refletia sobre o assunto. Lembrei que alguns arquivos de imagem, o .eps (que acho que nem se usa mais) e os atuais .pdf, não são realmente sequências de zero/um, utilizam, por economia, a tabela de caracteres alfanuméricos. Pensando nisso imaginei que se poderia imprimir um livro com um arquivo de imagem, garantindo-lhe assim uma sobrevida material em seu estado de informação. Sim, a “partitura” não precisa ser eletrônica, pode ser em papel também, por que não? Mudando a extensão de .pdf para .txt e abrindo com um editor tipo notepad você tem a imagem em formato texto. Imagine um arqueólogo do próximo milênio encontrando um tal livro. Ele poderia, como um Champollion, digitar a sequência novamente em um meio eletrônico e, descobrindo o seu driver (desejamos-lhe desde já boa sorte), imprimir a imagem. Não seria divertido?
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