A fotografia digital é um piano mágico

Imagine que alguém inventasse um piano no qual qualquer pessoa poderia tocar qualquer música da qual tivesse alguma memória ainda que vaga. Qualquer um conseguiria tocar nesse piano como se estivesse cantarolando ou assobiando, mas em grande estilo, como um verdadeiro pianista. Mesmo sem ter jamais estudado música, as notas fluiriam com graça e virtuosismo, como que por milagre. Seria uma super invenção, todos ficariam muito felizes, o tal piano venderia aos milhões e qualquer um poderia tocar suas músicas preferidas, em casa, nas festas ou encontros com amigos e familiares.

A analogia entre esse piano mágico e a fotografia digital para mim funciona no sentido de que as câmeras digitais, incluindo os celulares, são para as imagens o que esse piano seria para a música. Principalmente para quem viveu a fotografia com filmes e se lembra de suas dificuldades, um celular pode realmente ser visto como algo mágico. Hoje, qualquer um faz fotos que antigamente apenas um profissional com equipamento sofisticado conseguiria igualar. O deslumbramento com as fotografias digitais, o orgulho de mostrar a foto perfeita nas redes sociais, ainda se nutre muito dessa memória recente daquilo que era difícil de se alcançar com os equipamentos de então, mas que hoje ficou ao alcance de todos.

Levando mais adiante a analogia, podemos imaginar que os novos pianistas não se tornariam necessariamente novos compositores. Ter um instrumento que faz fácil aquilo que antes era difícil não torna ninguém criativo. O mais provável é que iríamos tocar apenas os grandes sucessos nos nossos gêneros prediletos de música, seja ela erudita ou popular. O piano daria vazão às composições já presentes em nossa memória e essas são massivamente composições consagradas por outros músicos. Os novos pianistas seriam mais intérpretes do que propriamente músicos compositores ou mesmo improvisadores.

Da mesma forma, a festa da fotografia digital está principalmente em se realizar imagens que já foram feitas, os ditos clichês. É assim que todos os clichês da fotografia são hoje executados com perfeição logo no primeiro click, como aconteceria com os sucessos musicais no tal piano mágico. São clichês que se consolidaram ao longo da história, que fazem parte de nosso repertório coletivo e que são por essa condição reconhecidos pelo fotógrafo. Entram aí os gêneros que conhecemos dos livros e concursos de fotografia: as fotos de por de sol, retratos, urbanas, paisagens, flores, animais… os mesmos assuntos de sempre e em geral herdados da pintura. Sempre as mesmas poses, as mesmas regras de composição, sempre realizadas segundo as convenções da “boa fotografia”. Uma vez escolhido o tema, a câmera ou o celular, como o piano mágico, não erram nas harmonias, nas melodias e nem nos ritmos. Fica para o fotógrafo apenas a tarefa de perceber que uma tal cena é um bom exemplo de um tal clichê. Basta reconhecer que “isso dará uma boa foto”, pois se parece com outras fotos, e o resto fica por conta da tecnologia digital.

Mas não só a dita fotografia vernacular tem no digital o seu piano mágico. Entram também os projetos conceituais, as pesquisas, os trabalhos… é quando a fotografia se apresenta como “autoral” e almeja algum lugar na arte contemporânea. São os diários íntimos, fotos diáfanas com seus modelos de olhos fechados, ruínas e locais abandonados, os “não lugares”, minorias, grafismos, abstracionismos, exotismos, citações, grandes produções e os detalhes do cotidiano que ao olhar dos mortais passaria despercebido. Essas fotos seguem uma estética acadêmica, no sentido de que é ensinada nas escolas, mas que, ironicamente, se imagina de ruptura ou pelo menos “criativa”. Temos hoje nas artes o professor que ensina o aluno como ser um bom rebelde. Estudam os rebeldes do passado e passam a imitá-los como se continuar a repetir o que se faz há mais de 100 anos pudesse ser um ato de rebeldia.

Minha sensação é que estamos reciclando, com as conveniências do digital, tudo o que se realizava ou que se buscava, às vezes a duras penas, no analógico. Isso acontece tanto nas artes como nas fotos sem nenhuma pretensão artística. A questão que me coloco para o futuro é se os “sucessos”, se a “foto bem feita”, se os padrões formais que os amadores veem e aprendem na web dos blogs, que os artistas aprendem na faculdade, que os profissionais aprendem com outros profissionais nos cursos e workshops, irão, e quando, se desgastar, perder o brilho, a ponto das pessoas perderem o interesse em fotografar ou ver fotografias. Será que a um certo ponto iremos nos cansar de tocar as mesmas músicas de sempre no nosso piano mágico? De onde será que virá, se é que virá, alguma renovação? É preciso renovar?

Para não terminar na confortável posição de quem joga apenas questões, vou me arriscar humildemente a dizer o que eu penso, mesmo com plena consciência de que posso estar totalmente enganado. Acredito que a época das rupturas já passou. Fazia parte do pacote da modernidade que também já passou. A fotografia não precisa se renovar. Irá se renovar pois nada permanece igual por muito tempo. Mas uma pesada lentidão parece que já está entre nós. Não temos mais aquela febre de renovação como vimos talvez pela última vez no século XX. Já estamos experimentando uma certa sonolência com o estereótipo do gênio iconoclasta. Nem sobrou muita coisa sagrada para ser profanada. Faz tempo que já não queremos mais saber qual é o último “ismo”. Exposições de velhos mestres enchem as salas muito mais do que as de pretensos vanguardistas. Aliás, difícil imaginar nos dias atuais conceito mais retrógrado que vanguarda.

A fotografia digital teve sim o efeito de tornar a habilidade técnica algo bem menos relevante que no passado. Isso aconteceu em todos os tipos de fotografia. Mas essa não será a morte da fotografia. Será apenas a morte da fotografia que se escondia atrás de tecnicalidades. Foi ruim para muitos profissionais, mas tem sido a festa dos amadores. Pois a fotografia franca, como simples relação do fotógrafo com seu objeto fotografado, agora está até mais fácil de acontecer e encantar. Irá se exprimir através de clichés, de fotos que se parecem com outras fotos. Os fotógrafos ficarão satisfeitos quando suas imagens forem bons exemplares de uma certa categoria de imagens que todos conhecem e reconhecem. Funciona como uma demonstração de afeto fazer a foto do familiar, do passeio, do por do sol ou das flores, quando elas se parecem com as boas fotos que circulam por aí com os mesmos assuntos. A fotografia acontece como uma obra coletiva na qual a ideia de novidade ou ruptura se esvaziou. Buscar a ruptura agora mais aborrece do que agrada. Ser igual voltou a ser bom. Parecer com os outros nos anima, nos une e conforta. O digital é a tecnologia de produção de imagens que melhor dá suporte e vazão a esse novo amor pela mesmice.

Mas atenção, é preciso ler “mesmice” não como algo negativo, como algo a ser evitado. Precisamos aprender a ler mesmice como um valor, como a virtude nestes novos tempos.

 

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