Neste post a ideia é examinar, nos tempos que antecederam o lançamento da Leica, as principais formas de relacionamento que fotógrafos podiam ter com sua atividade, o que buscavam e como se entendiam. Servirá como um complemento ao post anterior onde o foco foi sobre a oferta de câmeras no mesmo período. Somadas, as duas visões devem compor um cenário que ajude a entender como e porque a pequena câmera da Leitz provocou uma revolução na produção de imagens.
A fotografia é democrática
Quando apresentaram a fotografia ao mundo, um ponto que Louis Daguerre e François Arago estressaram muito foi que qualquer um, mesmo sem conhecimentos científicos ou dons artísticos, poderia fotografar usando o processo do daguerreótipo. Como todos poderiam fotografar, mas nem todos tinham o talento para pintar ou desenhar, subentendia-se que a fotografia seria indiscutivelmente democrática.
Na prática, o eixo do democrático foi se deslocando do “poder fotografar”, como pretendia o inventor, para o menos ambicioso “poder se fazer fotografar”, no caso, geralmente por um profissional. Pois acontece que o equipamento era caro e o procedimento ainda um pouco complicado e muito sujeito a falhas. Por essa barreira de entrada para o time dos fotógrafos e pela natural e subsequente queda no preço de um retrato, causada pela multiplicação dos estúdios e dos fotógrafos itinerantes, o aspecto democrático da fotografia ficou mais associado à sua acessibilidade, quando comparada à pintura ou desenho.
Um outro aspecto menos citado, sobre a natureza democrática da fotografia, é que a luz do sol não lisonjeava ninguém e todos saiam nos daguerreótipos com sua aparência real. Fato este que não acontecia nas artes pois os artistas sempre tratavam de dar uma boa melhorada nas feições de seus clientes, em especial os muito ricos e importantes.
Mas a popularização não foi imediata. Na década de 1840 um retrato feito em um daguerreótipo de 1/6 de placa (2 ¾ x 3 ¼ polegadas ou 7 x 8,2 cm), nos Estados Unidos, custava algo entre 3 e 5 dólares (fonte: Beaumont Newhall – The daguerreotype in America).

Jeremiah Gurney e Martin Lawrence, estúdios na Brodway Av. Eram instalações imponentes com recepção e galeria de retratos no térreo, produção nos andares intermediários e estúdio propriamente no último andar para aproveitamento melhor da luz. (fonte: Beaumont Newhall – The daguerreotype in America)

Daguerreótipo – 6,7 x 5,5 cm
Os daguerreótipos eram tratados como pequenas jóias. Vinham dentro de estojos com muitos ornamentos dourados, exterior em couro com baixo-relevos e veludos no interior. Embora pudessem ser re-fotografados, não eram vistos como um processo dado a cópias e edições. Cada imagem era uma peça única pois a placa que era entregue ao cliente era a mesma que estivera dentro da câmera fotográfica.
Nos Estados Unidos o daguerreótipo resistiu muito mais que na Europa à substituição por novos processos, positivo/negativo e permaneceu em uso por muito mais tempo. Só em Nova York em 1850 existiam 86 estúdios, que eram chamados de “portrait galleries”, sendo 37 na avenida Broadway. Somente na década de 1860 começaram a migrar para o negativo/positivo ou o Ferrotype (também chamado Tintype) que tinha um custo bem mais acessível por prescindir da placa prateada e seu laborioso polimento.

fonte: Beaumont Newhall – The daguerreotype in America
As instalações e o cerimonial eram para impressionar os clientes. As recepções eram luxuosas. Acima a de Mathew Brady, mais conhecido por seu trabalho na Guerra Civil americana, mas que foi um importante retratista a vida toda. A perspectiva está exagerada quanto ao tamanho do salão, mas não na sua aparência geral, era tudo em veludo, tapeçarias, dourados e afrescos no teto. Esta foi a fase áurea do Daguerreótipo nos Estados Unidos.
A acessibilidade à fotografia deu um grande salto a partir dos anos 1850 quando surgiu comercialmente o processo de negativo sobre vidro usando o colódio e a impressão da cópia final em papel albuminado. Essa combinação permitiu o surgimento das Cartes de Visite (acima). Pequenos cartões, geralmente 10 x 6,3 cm, que podiam ser comprados às dúzias e que traziam normalmente retratos em busto ou corpo inteiro.

Cartes de Visite, fotografias montadas em cartões
Nesse ponto sim, qualquer pessoa com um mínimo de recursos poderia se fazer retratar e ter sua fisionomia registrada para a posteridade. O sucesso foi tão grande que surgiu ainda um comércio de Cartes de Visite de celebridades da época ou até de pessoas já falecidas a partir de fotos de pinturas.
Para a correta apreciação das coleções de CV, como são comumente referidas as Cartes de Visite, as famílias incorporaram um novo objeto em suas mobílias, o Graphoscope (abaixo). Com eles podemos imaginar animadas sessões de exibição de coleções com fotos de amigos, parentes e famosos. Foi dessa forma que, ainda que poucos efetivamente fotografassem, a fotografia invadiu os lares e passou a fazer parte da vida das pessoas.

Graphoscope
Uma dúzia de Cartes de Visites, custavam em 1890 algo como 25 centavos. (fonte: op.cit. Photography: Essays & Images) Nesse ponto podemos dizer que a fotografia se democratizou, isto é, no aspecto de poder ter suas fotos realizadas por um profissional a um preço bem acessível, mas não ainda no de fotografar.

Humor londrino sobre o assédio aos transeuntes disputados pelos fotógrafos. (fonte: Helmut Gernsheim – A concise history of photography)
Em todo esse período que se estendeu até 1890 aproximadamente, a fotografia permaneceu portanto mais um assunto de profissionais que podiam ser a one man show, no caso dos fotógrafos itinerantes, que realizavam todo o processo sozinhos, ou de grandes estúdios que chegaram a empregar 200 pessoas e faziam do retrato uma produção em série com postos especializados em cada mínima etapa, desde recepcionar o cliente até colar a fotografia sobre um cartão suporte com o logotipo do fotógrafo que dava nome ao estúdio.
Mas em paralelo a essa profissão solitária, ou verdadeira indústria com seus “estúdios fábricas”, a fotografia contagiou, desde o início, muitos adeptos na parte mais abastada da população e tornou-se uma atividade típica para pessoas ricas e cultivadas. Ela entrou para o grupo dos passa tempo produtivos como música, poesia, colecionismo, artes plásticas e tantas outras possibilidades de ocupação dedicada que hoje correspondem mais ou menos ao conceito de hobby. Os temas eram os mais variados, retratos, paisagens, curiosidades, naturezas mortas e fotos artísticas com produções elaboradas. A constante era o apreço técnico no fotografar.
Uma terceira e última categoria de fotógrafos que vale a pena citar seriam, profissionais ou não, aqueles que usavam a fotografia como forma, ou ferramenta, de documentação. A fotografia mais próxima de como a concebeu François Arago, como uma ferramenta para as ciências da natureza, da história, da geografia e registro dos eventos importantes da política, da cultura e da sociedade como um todo. A imprensa, por exemplo, logo serviu-se da fotografia ainda que não diretamente, mas como base para os gravadores dos periódicos ilustrados.
Tudo isso para dizer que nos seus primeiros 50 anos a prática da fotografia era algo visto como maravilhoso, porém complicado. A barreira de entrada era alta, tanto pelo preço e quantidade dos equipamentos que incluíam um laboratório, como pela curva de aprendizado que passava por muitas frustrações. Sabe-se que em 1840, em Boston, um certo Dr. Bemis comprou, do representante direto de Daguerre nos Estados Unidos, um conjunto completo para fotografar e processar daguerreótipos pela soma de 51 dólares. Isto equivaleria a um ano de aluguel de uma pequena casa ou apartamento naquela cidade. Poderia ser também a renda de 1 a 3 meses de um trabalhador qualificado. Seria como comprar hoje uma câmera digital top de linha. Um investimento que demandava uma posição financeira mais confortável. (op.cit. – The daguerreotype in America).
Sedimentou-se então uma ideia de que manusear uma câmera e todo o aparato de preparação, revelação e impressão das placas seria um privilégio de poucos diletantes ricos ou uma profissão que chegou a produzir fortunas (no caso dos grandes estúdios) ou apenas a subsistência de fotógrafos de feiras e quermesses. Uma minoria de cientistas e fotógrafos comissionados por governos e empresários para trabalhos específicos, também faziam parte da paisagem e eram especialistas na área.
A fotografia teve assim uma exposição enorme em todos os estratos da sociedade. Era a maravilha do século XIX. Falava-se e respirava-se fotografia. Porém, como prática ainda cobrava um preço de entrada muito alto e permaneceu restrita a quem pudesse investir ou arriscar um bom capital de tempo e dinheiro. Como se poderia esperar, isso criou uma demanda enorme por uma fotografia que fosse realmente democrática no sentido de que qualquer um poderia se fazer fotógrafo sem ter que mudar de vida ou endividar-se.
… e a indústria respondeu
Dos anos 1850 até 1880, após uma relativamente breve fase dos daguerreótipos e calótipos, consagrou-se o vidro, como suporte para o negativo, e o papel para o positivo. O processo quase que universalmente usado era o colódio ou placa úmida. Esse processo exigia preparação e processamento imediatamente antes (para sensibilizar a placa) e após o click (para revelar a imagem) de modo que um grande aparato precisava estar bem ao alcance, no estúdio ou no campo.

Câmera e laboratório portátil para fotografias com placa úmida.
Por volta de 1880, teve início o uso da gelatina como meio de suspensão para os sais de prata. A grande vantagem desses novos negativos de vidro é que estas placas eram “secas”. Podiam ser preparadas e guardadas para uso imediato ou muitos meses depois. Também a revelação não precisava ser logo em seguida à tomada da foto. Ela podia ser feita comodamente em um laboratório, também até meses depois. Além disso as placas secas precisavam de menos luz para registrar uma imagem e permitiram, com as novas lentes com aberturas médias, por volta de f/8, o surgimento de câmeras para se usar sem tripé, sem pano preto, apenas apontado-as para a cena e clicando. Seus obturadores produziam algo como 1/50 a 1/10s.
Consequência importante dessa inovação foi que com a tomada da fotografia tornando-se independente da preparação da placa e seu processamento, o tamanho das câmeras passou a ser objeto de atenção pois era o único equipamento que ia a campo e, obviamente, quanto menor e mais leve, melhor. No entanto, a vantagem da miniaturização encontrava a barreira de que praticamente todas as impressões eram feitas por contato, isto é, a cópia final tinha o mesmo tamanho do negativo. O ruim de se fotografar com uma câmera muito pequena era ao final ficar com fotografias igualmente reduzidas. Para ganhar nos dois lados, surgem os ampliadores que permitiam, a partir de um negativo menor, produzir-se uma impressão de tamanho mais significativo.
A ideia da foto ampliada foi adotada apenas pelos fotógrafos mais avançados, pois complicou um pouco mais o pós-processamento. Exigia uma operação mais elaborada e com mais equipamentos que a simples cópia por contato, a qual, a rigor, pedia apenas uma placa de vidro para prensar o negativo contra o papel. A maioria esmagadora das fotos permaneceu feita por contato com negativos que começavam em geral em 6×9 cm e raramente passavam do 18x24cm.

Ampliador Kodak do início do século XX, para luz natural. Permite se colocar um negativo 6x9cm ou 9×12 no lado direito e se obter uma ampliação até 18×24 no lado esquerdo.
A ruptura tecnológica que foi a união das emulsões secas, mais sensíveis, com as lentes de uso geral, mais luminosas, não tardou a causar uma reviravolta total na relação da sociedade com a fotografia. Em um primeiro momento surgiram muitos fabricantes que ofereciam algo pronto para uso em alguma etapa do processo de laboratório. O fotógrafo não precisava mais preparar suas placas, podia comprar placas prontas, usar quando quisesse e revelar também quando quisesse. Surgiram as primeiras marcas comerciais, não apenas para placas mas também para reveladores e papéis fotográficos. A fórmula não levava mais o nome do reagente básico, também não era mais do fotógrafo, não era mais a receita caseira compartilhada entre amigos ou pesquisadores nas publicações especializadas, mas sim uma propriedade do fabricante de insumos para fotografia. O revelador Rodinal, por exemplo, nome que circula até hoje nos meios fotográficos, foi patenteado em 1891 pela Agfa.

Embalagem do Rodinal nos anos 1960
Isso tudo rumava para uma simplificação considerável do laboratório dos fotógrafos, tanto amadores como profissionais. Poderia finalmente trazer muito mais gente para trás das câmeras e tornar a fotografia muito mais difundida. Mas esse seria um pensamento ainda tímido. A simplificação foi muito mais além e trouxe de fato milhões de novos fotógrafos.
Enfim fotógrafos
Um nome chave, emblemático, porém não o único a entrar em cena neste momento foi George Eastman, fundador da Kodak. Ele já havia iniciado com relativo sucesso uma produção de placas para o comércio. Mas em dado momento percebeu que todo o processamento em laboratório, que era parte importante da diversão para um certo tipo de amador avançado, era ainda uma barreira para uma multidão que também poderia fotografar. Enquanto que os primeiros adoravam explorar as infindáveis combinações de marcas de placas, reveladores, tempos, temperaturas e seus próprios “aditivos” que desenvolviam, intensificadores, redutores… seus segredos de laboratório, e disputavam entre si qual seria a emulsão mais sensível, o grão mais fino, a escala tonal mais ampla… este processamento era de total desinteresse para um grupo muito mais numeroso mas que mesmo assim adoraria registrar seus momentos familiares nos domingos, nas festas, passeios ou viagens de férias. A pergunta que George Eastman se fez foi: e se nós fizermos todo o trabalho de laboratório para que as pessoas não precisem fazer ou saber nada além de apertar o botão?

Folheto da Kodak – 1888
É claro que ter uma ideia assim não é ainda o pote de ouro no final do arco-íris. É o tipo de ideia que levanta centenas de desafios a serem resolvidos. Desafios logísticos, de comunicação, de industrialização, de financiamento… mas o fato é que George Eastman, mesmo que nem tenha sido o primeiro a conceber o negócio, o setor, que hoje chamamos de “foto-acabamento”, conseguiu montar uma operação confiável e funcional. Rapidamente Kodak tornou-se uma das maiores marcas do século XX.
Uma primeira decisão importante foi apostar no suporte flexível para os negativos: o filme em rolo, inicialmente em papel e depois em celulóide. Isso foi importante para que já no carregamento da câmera ela ficasse pronta para muitas fotos. A primeira câmera, aquela que inaugurou o conceito, foi lançada em 1888 e era vendida já carregada com filme para 100 fotos. Depois de enviá-la para processamento, o cliente recebia as cópias e mais a sua câmera novamente carregada para outras 100.
A partir de então, realmente, a fotografia estava ao alcance de todos, bastava ter uma câmera. Tal princípio cristalizou-se na fórmula “You press the button, we do the rest” (você aperta o botão e nós fazemos o resto), que foi o slogan ventilado aos quatro cantos do mundo pela Kodak.
Foi pensando em “basta ter uma câmera” que George Eastman tratou, ao mesmo tempo, de fazer com que esta tivesse o menor custo possível. Só assim o círculo se fechava. As câmeras para os novos fotógrafos eram muito simples e limitadas. Eram as Box Cameras, como, por exemplo, a Kodak Brownie nº2, que vendeu aos milhões.

Kodak Brownie nº2, lançada em 1901 com filme 120, em rolo, no formato 6 x 9 cm.
Muitos outros fabricantes entraram na nova tendência e passaram a ofertar box-cameras. Nessa categoria, praticamente apenas fotos externas em dias claros são possíveis. A lente é, na maioria dos casos, simplesmente um menisco, um único vidro côncavo de um lado e convexo do outro. O enquadramento é feito pelos brilliant finders, muito pequenos, que não permitem uma visão muito clara do que está ou não incluído no quadro da foto. O lado bom é que não há praticamente nada o que se regular nessas câmeras. Normalmente elas têm apenas uma velocidade (~1/40 s) mais Bulb (aberta enquanto o botão estiver pressionado) e entre uma e três aberturas, por exemplo, f/11, 16 e 22.
Os milhões de novos fotógrafos ficaram encantados. Era fantástico finalmente poder fotografar a um baixo custo, sem complicação e, em certo sentido, sem nem mesmo ser fotógrafo.
Dois tipos de amadores
Os profissionais obviamente não embarcaram nessas box cameras ou seu equivalentes. Elas não ofereciam qualidade, nem de longe, compatível com suas necessidades. Além disso, a fotografia “na mão” ia contra toda uma imagem formada ao longo de décadas sobre o ato fotográfico. Os consumidores dessa nova fotografia e as situações que eles fotografavam, não colidiam com o trabalho dos profissionais. Convinha a todos que os territórios permanecessem bem separados. De um lado a fotografia séria e de outro a fotografia lazer, descompromissada, brincadeira de família e amigos. Quem mais sentiu-se incomodado com a avalanche de novos colegas foram os amadores mais antigos que praticavam uma fotografia mais elaborada tecnicamente.
O termo amador, amateur em inglês ou francês, relacionado a alguma atividade, vem do latin amator, e significa literalmente aquele que ama. Mas o termo passou por uma transformação depois de suas origens. No início seria alguém que justamente por amar, estude e conheça muito o objeto de sua paixão, a fotografia no caso. Por isso ser fotógrafo amador denotaria dedicação e conhecimento sobre os equipamentos e processos fotográficos. Mas a este sentido, já no início do século XX, juntou-se outro como o de simples oposto a profissional e com isso poderia significar alguém que não domine, que não conheça o assunto em questão a não ser muito superficialmente. Amadorismo, por exemplo, é um termo usado especificamente para denotar falta de destreza ou conhecimento.
Hoje parece que esse lado da superficialidade é o que ficou. Se quisermos significar um não profissional que seja ao mesmo tempo um profundo conhecedor temos que acrescentar algo ao termo amador. Em seu livro Vernaculaires, essais d’histoire de la photographie, Clément Cheroux, sugere uma distinção. Ele fala em amateur expert e amateur usager, que seria amador expert e usuário. Tem o sentido de que o primeiro é aquele que é realmente conhecedor e o outro simplesmente usuário.
Ninguém menos que Alfred Stieglitz, em um artigo publicado em novembro de 1899 na Scribner’s Magazine, mostra-se preocupado com a crescente deterioração to termo “amador”. Vale uma longa citação: “Permitam-me chamar a atenção para um dos erros mais universalmente populares relacionados à fotografia: classificar trabalhos supostamente excelentes como profissionais e usar o termo amador para transmitir a ideia de produções imaturas e justificar fotografias terrivelmente ruins. Na verdade, quase todos os melhores trabalhos são, e sempre foram, feitos por aqueles que seguem a fotografia por amor e não apenas por questões financeiras.” (op.cit. Photography: Essays & Images)
O título do artigo é Pictorial Photography, refere-se a uma corrente na qual Stieglitz era, nessa época, um ilustre representante. Ele, entre muitos outros, procuravam dar a condição de arte às imagens fotográficas, por contraste ao processo mecânico que sempre foi a própria identidade da fotografia, o “Pencil of Nature” de Talbot, o lápis da natureza por contraste ao lápis do artista. Nessa direção, Stieglitz e muitos outros produziam imagens com temas pictóricos, contornos difusos, figuras evanescentes e fundos indistintos, pois estes eram recursos consagrados na pintura, a forma canônica de arte.

Alfred Stieglitz em sua fase pictorialista – Inverno – 1893 – fotogravura
Havia mesmo um acirrado debate se a fotografia deveria ser sempre perfeitamente nítida em todas as suas partes ou se o soft focus, como chamamos hoje, seria um recurso admissível na produção fotográfica. Compreendemos melhor a colocação de Stieglitz em seu artigo Pictorial Photography, compreendemos melhor sua preocupação e até revolta em defesa de um certo tipo de fotógrafo amador, se consideramos que os defensores da nitidez, maldosamente rotulavam as imagens dos pictorialistas de falhas, fotos perdidas e resultado do amadorismo. A pecha caia perfeitamente pois justamente nesse momento um exército de amadores usuários (para usar o termo de Cheroux), produzia com as box cameras, milhões de fotos com lentes baratas, fotos tremidas e mal focadas.
Os amadores experts, que desde o início tiveram um papel de destaque na fotografia, que sempre estiveram na ponta de suas tecnologias em óptica, química e mecânica, viam na nitidez das imagens um parâmetro para se diferenciar dos fotógrafos de box-cameras, de câmera nas mãos e suas fotos tremidas e/ou fora de foco. Em seu livro Le flou et la photographie, Pauline Martin afirma “Neste contexto, trata-se de delimitar um saber-fazer e, com o surgimento de clubes de fotografia por toda a França, o termo “borrão” [seria a falta nitidez, flou, no francês ] designa cada vez mais imediatamente um defeito básico a ser corrigido, a saber, a falta de nitidez. A má qualidade do foco e de certas lentes resulta no que La Photographie – uma revista popular não destinada a um público especializado – chega a chamar de ‘o efeito desastroso do borrão fotográfico'”.
Efeito colateral irônico nessa situação foi que de repente, fotógrafos pictorialistas como Alfred Stieglitz tiveram que explicar que suas imagens estavam “desfocadas” por uma intenção estética, filosófica e que tinham profundo conhecimento dos recursos de seus equipamentos. Situação totalmente diferente das imagens desfocadas produzidas pelos fotógrafos de domingo com suas câmeras baratas e revelação/impressão por atacado em um laboratório qualquer. Mas nem sempre tiveram sucesso em fazer essa distinção.
Mais adiante Stieglitz diz qual é o cenário na entrada do século XX no que diz respeito aos fotógrafos: “No mundo fotográfico atual, são reconhecidas apenas três classes de fotógrafos: o ignorante, o puramente técnico e o artístico. Para o fotografar, o primeiro só traz o que não é desejável; o segundo, uma educação puramente técnica obtida após anos de estudo; e o terceiro, traz o sentimento e a inspiração do artista, aos quais se acrescenta posteriormente o conhecimento puramente técnico.”
Foi assim que no início do século XX praticidade e qualidade posicionaram-se algo como excludentes entre si na fotografia. A boa fotografia tinha que ser difícil assim como o medicamento de gosto ruim é o que cura. Os amadores avançados, a maioria vinda de classes aristocráticas e alta burguesia, consideravam a fotografia como território seu, consideravam-se seus representantes legítimos e responsáveis por eleva-la à condição de arte. Rejeitaram essa nova fotografia ocasional, sem ambição, banal nos temas, pobre na execução e feita com câmeras baratas. Não queriam ser confundidos com esses snap-shooters, termo pejorativo com o qual designavam quem não fosse engajado como eles.
A criação e expansão dos foto-clubes é muito significativa dessa separação. Foi um instrumento para delimitação de território entre amadores experts e os simples usuários de fotogafia. Segundo Clement Cheroux, no já citado Vernaculaires, em 1854 havia apenas uma associação na França, a “Société Française de Photographie (SFP). Os anos 1880 são marcados pela criação da Société d’excursions des amateurs de photographie (SEAP, 1887), depois pelo Photo-Club de Paris (1888). Em 1892, as sociedades fotográficas estão ao número de 37; em 1901 já são 80 e o número atinge 120 em 1907″. Eram fotógrafos que processavam suas fotos, experimentavam, além dos papéis fotográficos de gelatina de prata, vários meios de impressão como Goma, Marrom Vandyke, Platina, Cianotipia e Carbono, possuíam várias câmeras e ópticas em geral para grande formato e na sua esmagadora maioria permaneciam no gesto ancestral da fotografia com tripé e chapas de vidro. Esse tipo de câmera é o que vimos na maior parte do catálogo da Zeiss Ikon até 1927, no post anterior.
Os equipamentos que correspondiam a essa segmentação da prática fotográfica, por algumas décadas limitaram as possibilidades da fotografia. O cerimonial de uma tomada de foto com uma câmera de placa de vidro em grande formato, com tripé, zero de automação nas funções de enquadrar/focar, armar obturador, carregar a placa, podia até fazer parte da identidade do fotógrafo profissional e assegurar uma imagem de expert para os amadores avançados, diferenciando-os do populacho. Havia um aspecto de ritual reservado apenas aos iniciados na fotografia. Mas implicava em várias limitações, por privilegiar temas mais estáticos, os ângulos de visão mais ortogonais, condições de luz mais favoráveis e outras condicionantes as quais, justamente para o fotógrafo amador, que a princípio estaria ou poderia estar explorando os limites da produção de imagens, buscando maior flexibilidade na captação de imagens na fotografia, eram apenas limitações que o amarravam a uma tradição.
Se fossem indagados sobre suas escolhas, provavelmente responderiam que o grande formato com as melhores ópticas e processamento rigoroso eram as trilhas mais seguras para imagens com a qualidade que buscavam.

Capa de um livro de humor sobre fotografia. Cuthbert Bede, 1855
A Leica foi bem a ruptura desse dilema entre qualidade e praticidade. Se a Kodak foi arrojada em apostar na fotografia para as massas, oferecendo câmeras e serviços para reduzir ao mínimo o envolvimento do fotógrafo com a produção de suas imagens, a Leitz apostou, em um primeiro momento, nos amadores que buscavam ao contrário aprofundar esse envolvimento. Ofereceu a eles, mais que uma câmera, mas um “sistema”, com lentes, visores, filtros, telêmetros, adaptadores-stereo, ampliadores, tanques de revelação, publicações… um mundo. Porém, tudo isso no formato miniatura do filme de cinema perfurado e com bitola de 35mm. Tudo isso com uma câmera que cabia no bolso do casaco.
A engenhosidade de Oskar Barnack, criador da Leica, também foi na direção de dar leveza ao ato fotográfico, mas ao mesmo tempo de oferecer e estimular o envolvimento do fotógrafo na busca de domínio e excelência máxima na qualidade de suas imagens.