Tive hoje a oportunidade de ver em ação, na Biblioteca Mario de Andrade em São Paulo, a fotografia em placa úmida de Roger Sassaki. Retratos em Ferrótipos e Ambrótipos estavam no menu do dia para as pessoas que visitavam o festival organizado pela revista de fotografia Zum, com palestras e workshops. Todos os ingredientes e aspectos dessa prática, ambulante por natureza, estavam presentes. Muita flexibilidade para adaptar-se às condições do lugar, do evento, do público que interrompe, quer saber, conversar, mexer e empresta um certo clima de quermesse ou feira de ciências. Mas por trás dessas turbulências todas, o processo direto (sem negativo ou arquivo raw), exige um protocolo bem rígido, uma disciplina com muitos passos que só com preparação e prática podem gerar o resultado esperado.
Sobre placa úmida
Umas poucas referências técnicas e históricas: A base desses processos ditos em “placa úmida” (wet plate) é um líquido chamado colódio que forma um suporte adequado para os sais de prata sensíveis à luz. O “úmido” vem do fato de que a foto precisa ser tomada e a placa processada antes que seque. Por isso o fotógrafo precisa então ter seu laboratório no mesmo local. Todo o começo da fotografia foi controverso e muitas disputas ocorreram sobre autorias e pioneirismos. Mas Josef Maria Eder (1855-1944), alemão, respeitado historiador e ao mesmo tempo químico especialista em fotografia, atribuiu ao inglês Frederick Scott Archer ( 1813-1857) a proeza de ter realizado as primeiras placas em colódio em 1850 (History of Photography, pag 345). Portanto, aproximadamente vinte anos depois de Daguerre e Talbot terem anunciado seus procedimentos inaugurais. O Talbotype, usando negativos em papel encerado, ainda viria a ser o futuro da fotografia, graças ao desenvolvimentos de emulsões em muito tributárias dos caminhos abertos por Archer com o colódio. Mas o Daguerreótipo, totalmente diferente, praticamente morreu quando o processo de placa úmida veio a público e ganhou a preferência quase absoluta no registro de imagens.
O colódio permitia se fazer negativos de vidro, que rendiam muito melhor os detalhes em comparação com os negativos de papel que, por mais transparentes que fossem, não tinham como superar a translucidez do vidro. Além disso originou duas variações para produzir positivos diretos, justamente o Ambrótipo (Ambrotype) e logo em seguida o Tintype ou Ferrótipo (Ferrotype), dois métodos que Roger Sassaki vem utilizando juntamente com o colódio original, este para produzir negativos. O Ambrotype é na verdade mais uma maneira de se montar o colódio feito no vidro, adicionando-se um um fundo preto posteriormente. Ainda é Eder quem diz que a primeira placa esmaltada sobre a qual foi aplicado o processo do colódio (Ferrótipo), gerando uma imagem positiva diretamente, foi realizada por Laurent Millet em 1854 (ibid. pag 347). O historiador conta ainda que Le Gray (França), o famoso fotógrafo, também disputou com Millet a mesma invenção. De suas pesquisas, Sassaki salienta ainda outros nomes que participaram e alguns que também reivindicaram a primazia no processo: James Cutting (EUA), Hamilton L. Smith (EUA), Adolphe-Alexander Martin (França) e Victor Griswold (EUA). Saber quem foi que fez primeiro torna-se uma questão impossível. O interessante hoje é percebermos a efervescência do ambiente e como eram ainda os próprios fotógrafos que puxavam o desenvolvimento dos novos processos.
No caso dessas aplicações do colódio para produzir positivos, o resultado final, em termos de detalhes, é muito comparável aos Daguerreotipos, mas tem a vantagem de que você não fica com aquela sensação tão comum, ao olhar uma foto realizada por esse processo, de que nunca está olhando pelo melhor ângulo. O caso é que o Daguerreotipo exige que o fundo refletido (atrás do observador) seja escuro, enquanto que no Ferrótipo ou Ambrótipo, o fundo está convenientemente atrás da emulsão e já é escuro por natureza.
Chega de história. Embora seja interessante pesquisar e conhecer a genealogia dos processos de geração de imagens, pois nos ajuda a entender nossa complexa relação com elas, o que Sassaki e tantos outros fotógrafos pelo mundo estão fazendo não deveria, a meu ver, ser colocado como curiosidade, homenagem ou resgate de um passado. Basta ver o processo sendo realizado, ver o encantamento acontecendo, para se perceber que ele faz todo o sentido em nosso próprio tempo. Porém, tal sentido encontra-se muito longe dos motivos que fizeram seu sucesso nos primórdios da fotografia. Trata-se de um resgate da tecnologia, mas não um desejo de voltar para trás ou manter um morto vivo. A placa úmida trouxe, na aurora da fotografia, uma facilidade e um resultado que não existiam e eram muito aguardados. Hoje, temos facilidade e performance demais com o digital, então o processo de placa úmida resurge como uma bem vinda complicação no fazer imagens – situação portanto oposta. Ironicamente, essa complicação é agora atraente por acenar como uma purgação, talvez uma pequena rebeldia contra as tecnologias do mal e a dependência que temos com elas, as grandes corporações, o consumismo, o imediatismo, o virtual e algumas outras bruxas contemporâneas.
O estúdio ao ar livre foi montado para se fazer retratos de meio corpo. Havia um apoio de cabeça pois o colódio é pouco sensível e pede exposições na casa dos segundos. Sassaki normalmente opera entre 1 e 4 segundos com diafragma entre f4 e f8. Mas vale observar que sendo o Ferróptipo um processo direto, que não irá demandar uma cópia sobre outro suporte, a densidade da camada sensível pode ser comparativamente bem mais tênue que no processo com vidro para negativo visando a reprodução. Uma fina camada de prata já proporciona uma boa escala tonal indo do preto do esmalte, nas áreas vazadas, até um marrom pálido nas áreas mais expostas. Por este motivo as exposições são bem mais curtas do que no colódio visando a produção de um negativo. De qualquer forma, o apoio para cabeça estava lá também para que o fotografado tenha uma referência de posição, já que a profundidade de campo é muito pequena e uma variação da distância rosto/lente acarretaria a perda do foco.
O formato era 4×5 polegadas (10,2 x 12,7cm), um bom tamanho para um trabalho mais intimista, para ser visto segurando com as mãos, perfeito para retratos. A câmera utilizada segue um modelo que se popularizou entre fotógrafos, amadores dedicados, e também entre profissionais, como field camera (câmera de campo). Uma sub-categoria das view camera (com vidro despolido para enquadramento e foco), porém leve e desenhada justamente para fotos externas ao contrário das pesadas máquinas de estúdio. Embora hoje nos pareçam também grandes e desajeitadas as field cameras eram as companheiras do fotógrafo turista. Exigia tripé, placas de vidro, laboratório… pelo menos uns 20 a 30 kilogramas de equipamento para os formatos menores, tipo cartões postais.
A lente era uma Derogy, francesa, do tipo Petzval. Provavelmente fabricada por volta de 1870. Como obturador Sassaki utilizava a própria tampa e um relógio de pulso. O diafragma do tipo Waterhouse, fechava a lente aumentando o tempo de exposição. Mas em vez das lâminas originais improvisava-se com um cartão recortado. Sem ele, provavelmente uma Petzval toda aberta pediria um obturador mais rápido e acurado por conta da muita luz de um dia que começou bem ensolarado.
O laboratório era convenientemente montado sobre uma bicicleta de carga com uma pequena bancada e um pano preto que não vedava completamente a luz. Mas esse problema constitui na verdade a solução para um outro, a luz que vaza, é filtrada por um outro pano vermelho e oferece a iluminação adequada para o processo que pode ser realizado sob luz dessa cor. Essa cortina se fecha inserindo o fotógrafo dentro do laboratório. O controle da temperatura, coisa essencial em laboratórios de filmes, aqui fica totalmente por conta do clima. Devia estar algo próximo dos 30°C do lado de fora e certamente alguma coisa mais lá dentro. As únicas saídas para o fotógrafo se adequar é fazer os ajustes nos tempos pois com esse calor todo os processos químicos se aceleram consideravelmente, ou mudar as concentrações das soluções para que fiquem mais fracas ou fortes conforme o caso.
O primeiro passo para uma foto é cobrir a placa (preta para o Ferróptipo) com uma fina camada da mistura de Colódio. Em seguida ela ficará por 2 a 3 minutos em uma solução de nitrato de prata e se tornará sensível à luz. As luvas são desejáveis, entre outras coisas, pois o nitrato de prata mancha qualquer material orgânico de preto.
Realizada a exposição, é hora de “entrar” no laboratório, retirar a placa do chassis e proceder a sua revelação. Embora se tenha a luz vermelha, Sassaki diz que a revelação por inspeção, no caso do Ferróptipo, é complicada pois com o suporte opaco fica muito difícil avaliar o ponto da densidade enquanto se ela se desenvolve. Mesmo a fotometria é difícil pois não há como padronizar todas as condições. O aperfeiçoamento se faz mais através da observação atenta do resultado e conhecimento das variáveis que afetam cada aspecto do mesmo. O fotógrafo orienta-se por esse conhecimento para fazer diversas correções e adaptações sucessivas ao longo de cada sessão.
A fixação, que visa a remoção do material sensível não exposto, é feita já do lado de fora em uma “banheira” vertical com uma janela de vidro pela qual podemos assistir a mágica da imagem que começa bem fraca em poucos segundos se materializa à nossa frente. Depois de fixada, lavada e seca, a placa recebe uma camada de verniz protetor. Os Ferrótipos tem uma permanência muito boa. O maior problema que se encontra nos mais antigos, do século XIX, acontece na camada de esmalte e não na emulsão em si.
Além de realizar retratos com o objetivo ancestral de registrar memórias para seus clientes, Roger Sassaki também ministra cursos e workshops nos quais qualquer um pode aprender e experimentar o processo de placa úmida. Não é preciso ser um profissional para fazer fotografias com processos desse tipo. Muitas contribuições importantes para a história do fazer imagens vieram de fotógrafos amadores, os chamados fotógrafos de finais de semana. Se você tem a sensação de que o digital já banalizou demais o que deveria ser algo mais autoral, mais pessoal, mais implicante, e que nem dá mais vontade de fazer outra coisa além de olhar para a telinha por 1 segundo e adeus, talvez seria o caso de experimentar o colódio. Para mais informações, visite o site: http://www.imagineiro.com.br, ou escreva para contato@imagineiro.com.br.
03/12/2016
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