Euryscope IV nº2 | Voigtlander

A história desta lente mereceria uma novela ou talvez um filme longa metragem. Mas não sobre ópticas, o que seria talvez muito técnico e aborrecido para o público em geral, mas sobre relações familiares. Ainda que um pouco deslocado do ambiente da ficção, o interesse de se entrar nesses detalhes em um site sobre fotografia é que esses elementos, digamos… anedóticos, nos dão uma ideia do espírito da época e nos fazem lembrar que por trás dessas inovações tecnológicas existiam ainda seres humanos trabalhando. Pode ser que esse não será mais o caso em um futuro breve.

A Euryscop é uma lente, melhor dizendo, é uma família de lentes que se desdobra em várias séries, fabricadas pela firma Voigtlander na Alemanha, em Braunschweig. A Voigtlander tem uma história que começa em 1756, portanto muito anterior à fotografia (1839). Sua produção era voltada principalmente para instrumentos ópticos científicos e de medida.

Voigtländer camera for Petzval lens - 1840

Câmera produzida em 1840 pela Voigtlander utilizando a lente de Petzval

Foi o neto do fundador que introduziu no portfolio da empresa a primeira lente concebida especificamente para a fotografia, a lente de Petzval. Isso foi logo após o anúncio do Daguerreótipo. Uma força tarefa liderada pelo matemático vienense Josef Petzval calculou a que viria a ser a sua famosa lente para retratos. Como era estreita a colaboração da universidade com a indústria e vice-versa, em temas científicos, Petzval entregou o desenho para a firma Voigtlander produzir um protótipo. Mas Peter Friedrich Wilhem Voigtlander produziu não só o protótipo mas, ao longo das décadas que se seguiram, milhares de exemplares para venda. Como o matemático ficou sem participação nos lucros do negócio a relação entre os dois azedou e terminou na justiça que deu razão ao industrial. Essa história é contada em detalhes neste outro artigo: A Lente de Petzval.

Lente tipo Petzval fabricada pela Voigtlander na década de 1860

 

Vamos pular para a década de 1860 quando a Voigtlander era uma das principais fabricantes de lentes para fotografia, com reconhecida reputação pela qualidade e muito respeito por sua história. Ainda era Peter Wilhem Friedrich von Voigtlander, nascido em 1812 que comandava a empresa e insistia, como frequentemente acontece com quem atinge um grande sucesso precocemente, em continuar na mesma trilha de ter como carro chefe a mesma fórmula, a mesma lente, de 20 anos atrás: a lente de Petzval.

Peter Wilhem Friedrich Voigtlander em 1843 aos 30 anos. Foi enobrecido pelo rei da Áustria em 1866 passando a usar “von Voigtlander” em seu nome.

Nesse meio tempo, firmas como Dallmeyer em Londres e Steinheil em Munique, haviam lançado em 1866 uma nova óptica com dois dubletos simétricos e que viria a ser o conceito para as primeiras lentes de uso geral, abrindo caminho para câmeras mais compactas e fotografia sem tripé. Outra firma importante, a Busch de Rathenow, fabricava ótimas lentes no conceito da Petzval por um terço ou até metade do preço praticado pela Voigtlander.

Desenho base das Aplanat da Steinheil ou Rapid Rectilinear da Dallmeyer

Peter Friedrich sentiu a concorrência, suas vendas da Petzval declinaram. Para adaptar-se,  a firma voltou a dar mais atenção para a produção de instrumentos científicos, como telescópios, e também fechou a fábrica em Viena mudando a sede para Braunschweig, onde desde 1849 funcionava uma filial. Peter Voigtlander recusava-se a investir em novos desenhos e insistia na velha fórmula da qual, em 1862, ele já havia produzido cerca de 60.000 exemplares, segundo Kingslake.

A relação de Peter Friedrich com Braunschweig é ainda mais antiga que a abertura daquela filial em 1849. Em 1845 Peter Voigtlander casou-se com a viúva Nanny Zinken (1813–1902) cuja terra natal era justamente Braunschweig. Isso teve provavelmente algum peso na sua decisão de ter uma filial naquela cidade. Mas o que nos interessa aqui é que de seu primeiro casamento Nanny Zinken trouxe para Peter Friedrich um enteado, Hans Zincke Sommer, nascido em 1837. Hans Sommer é justamente o criador da lente Euryscop.

O mais curioso, é que ao pesquisar por seu nome na web, encontramos um Hans Sommer músico, compositor de renome em sua época. Era tão ativo,  chegou a fundar com Richard Strauss uma associação para proteção dos músicos em matérias diversas, como em direitos autorais, por exemplo. Ainda é possível se encontrar gravações recentes de suas composições à venda na web. Minha primeira reação ao encontrar isso foi: não, não é esse o Hans da Euryscop. Mas depois, verificando melhor… sim é o próprio. Acontece que o padrasto, embora o jovenzinho já mostrasse sua inclinação para música e quisesse seguir carreira, não aceitou a ideia de um enteado artista e em vez disso o enviou em 1854 para Göttingen estudar matemática, onde ele completou um doutorado em 1859.

Retornando para Braunschweig, Hans Sommer inicia como aprendiz no “chão de fábrica”, e isso significava trabalho duro em máquinas como o torno, por exemplo. Foi uma decepção. O rapaz não tinha jeito ou habilidade com o trabalho manual. Corrado d’Agostini levanta a hipótese de que esse foi mais um motivo para a “falta de respeito, se não de aberta hostilidade, em relação ao enteado”, da parte de Peter Friedrich.

Agostini até pondera que pode ser compreensível a preferência pelo filho Friedrich Ritter (1846-1924) em detrimento do enteado. Mas o que fica difícil de entender é como que o patriarca que era também um excelente opticista e homem de negócios, pode ignorar, ainda mais com a firma em dificuldades e uma concorrência muito ativa, os muitos projetos interessantes, inovadores, que Hans Sommer submetia à sua aprovação. Em sua autobiografia Sommer escreve: “Quando Voigtlander via lentes produzidas segundo meus desenhos, ele diria que suas óbvias vantagens não eram significativas o suficiente para que merecessem abandonar o velho sistema”.

Hans Zincke Sommer

Enquanto isso, Hans Sommer tornou-se um cientista muito respeitado no meio acadêmico. Lecionava matemática na Braunschweig’s Technische Hochschule (1859–84), e foi seu diretor de 1875 em diante. Ironicamente, se considerarmos o desprezo de seu padrasto e explicita preferência pelo seu irmão, 9 anos mais novo, Friedrich Ritter Voigtlander, Hans ajudou a forma-lo dando-lhe aulas de matemática e física, preparando-o para a sucessão na firma do pai.

De fato, de 1871 em diante Friedrich Ritter foi assumindo mais e mais responsabilidades na firma porém, como seu pai ainda fazia questão de ter todas as decisões finais, não tardou para que os dois entrassem em conflito ao ponto de Friedrich Ritter ameaçar sair para abrir seu próprio negócio.

Friedrich Ritter von Voigtlander

Em 1876, Peter Friedrich Wilhem von Voigtlander passou definitivamente e totalmente o comando da empresa para seu filho. Já em 1877 foi lançada a primeira lente aplanática da Voigtlander. Algo como 10 anos de atraso em relação à concorrência. Foi mais tarde batizada com o nome comercial de Euryscop. Hans Sommer havia desenhado esta lente em 1872, mas seu lançamento comercial fora barrado pelo padrasto. Quando finalmente foi colocada do mercado, foi um sucesso enorme e deu um novo fôlego à Voigtlander. Peter Friedrich Wilhem von Voigtlander morreu um ano depois, em 1878, aos 66 anos.

Mais uma virada nessa história é que apesar da colaboração próxima nos primeiros anos e até pelo reconhecimento de seu trabalho, poderíamos esperar que a relação de Hans Sommer com seu meio-irmão poderia ser das mais amigáveis quando este último assumiu o controle da firma . Mas, em vez disso, Friedrich Ritter foi se tornando cada vez mais hostil e autoritário (Agostini) e em 1882 romperam de vez.  Mas nessa época Sommer já dedicava-se principalmente à universidade onde lecionava e também foi daí em diante que pode voltar à sua paixão de juventude que fora a música. Brilhante como era, também nessa área foi capaz de deixar sua marca para a posteridade.

A Euryscop Série IV nº2

Pelo número de série, de acordo com o VadeMecum, esta é uma lente fabricada em 1888. Nessa época não era hábito se incluir a distância focal gravada na lente. Os fotógrafos referiam-se ao material publicado pelos fabricantes e distribuidores.

Esta tabela no livro Ausführliches Handbuch der Photographie de Josef Maria Eder, de 1893, vemos que a Série IV nº2 deve ter uma distância focal de 25,4 cm e deve cobrir 18 x 24 cm. O diâmetro do círculo de imagem é 38,5 cm. Como a diagonal de 18 x 24 cm é 30cm (cálculo fácil aqui: Círculo de imagem mínimo para um dado formato), ela dá alguma liberdade de movimentos. Por exemplo um front raise, pode subir até 50mm no formato retrato.

Isso coloca a linha do horizonte mais ou menos a 1/3 do quadro e permite acertar a perspectiva em muitas situações. Esta calculadora é online e está disponível aqui: Elevação da lente e a Linha do horizonte

A distância focal medida por regressão linear da magnificação deu como resultado algo ligeiramente diferente, como se vê no gráfico abaixo.

259 mm em vez dos 254 mm na tabela do fabricante. Mas isso é absolutamente normal e está dentro da margem de erro da lente e do método.

A lente veio com apenas um diafragma tipo Waterhouse. Para fabricar os demais foi necessário calcular o quanto que o elemento frontal amplia o diâmetro real do diafragma. Normalmente faço isso fotografando a lente com e sem o elemento frontal. Uso uma lente mais longa para reduzir as distorções e depois comparo os tamanhos da abertura medindo os pixels na imagem e fazendo uma regra de três.

Na foto acima, à esquerda com lente e à direita sem lente. Dividindo 224 por 204 obtive o fator 1,098 que me permitiu calcular os diâmetros reais de um conjunto de diafragmas para completar o que veio com a lente. Segundo Eder as Euryscopes da série IV tem abertura total f / 5.6. Dividindo-se a distância focal 254 mm por 5.6 resulta em uma pupila de entra de 45 mm. Dividindo-se 45 mm pelo fator 1,098 resulta em 41 mm que é aproximadamente a abertura desta lente sem nenhum Waterhouse.

Procedendo desta forma eu encontrei quais outros diâmetros precisava e desenhando-os nessas medidas pude mandar cortar a laser um conjunto de diafragmas como mostra a figura abaixo. Uma descrição completa e detalhada sobre como descobrir a abertura de uma lente;  ou como achar que diâmetros de diafragma resultem em quais aberturas, está disponível online neste link: Medindo a abertura f em lentes

O Waterhouse em latão veio na lente e corresponde à abertura f/8. Os outros são em aço carbono enegrecido e dão a sequência até f/64.

Acima o desenho da lente reproduzido a partir do livro já citado: Ausführliches Handbuch der Photographie de Josef Maria Eder, de 1893. Fica clara a simetria e mostra ainda que são dois dubletos relativamente finos. O ângulo de visão é de 70º.

Ainda segundo Eder, depois do lançamento em 1878, várias outras versões foram desenhadas sobre o mesmo conceito. Foram desdobramentos lançados por Friedrich Ritter von Voigtlander aproveitando os novos vidros da cidade de Jena, na Alemanha.

Aberturas são dadas pelo habitual número f/ (distância focal dividida pela pupila de entrada)

Este quadro, feito a partir de informações no já citado livro  do Eder, de 1893, podemos ver todas as séries que foram desenvolvidas por Friedrich Ritter Voigtlander tomando por base o desenho de Hans Sommer.

Era comum que as séries em torno de um mesmo conceito se desdobrassem por usos. No topo temos duas séries para retratos que priorizam a abertura e sacrificam um pouco o ângulo de visão. As séries IV fica no meio termo em tudo e seria uma lente de uso geral. A partir daí temos duas grande angulares (weitwinkel) de 80º, uma mais veloz com f/6 e a outra com 7 3/4, praticamente f/8. A próxima, série VII é a que atinge o maior ângulo mas sacrifica mais a abertura fechando em f/11. Por último uma lente para artes gráficas (Reproductionen), cujo menor formato já começa em 40x50cm. É impressionante a quantidade de lentes diferentes que eram oferecidas. Multiplicando-se as séries pelo número de focais disponíveis para cada série, temos 52 opções de Euryscopes!

No uso a Euryscope mostra que é uma excelente execução do conceito de Aplanat ou Rapid Rectilinear. As lentes são, ou pelo menos eram assim. Elas normalmente partiam de um conceito, um certo número de elementos ou simplesmente “vidros”, cada um com seu papel. Este papel pode ser dar o poder de convergência mais pronunciado do conjunto, outro vidro ou grupo irá endireitar o campo focal, outro irá corrigir a aberração a , b ou c, etc etc. Dado este conceito, que normalmente veio de um insight de algum opticista com muita experiência e intuição, daí vem a parte de render, de calcular as melhores formas de dar vida ao conceito. Essa parte é de muita matemática e irá dizer se o conceito inicial pode ou não dar uma boa lente, dentro do uso a que se destina e dentro do orçamento e complexidade que pode apresentar.

É por isso que nem todas Aplanate ou Rapid Rectilinear são iguais e é isso que fez o sucesso das Euryscopes: elas estavam bem na fronteira do máximo que se poderia extrair do conceito de dois dubletos colados e simetricamente posicionados em relação ao diafragma. A próxima evolução foi a criação das Anastigmáticas.

Para finalizar, duas fotos realizadas com essa Euryscope IV nº2. Embora ela cubra 18 x 24 cm eu a montei em uma câmera da ICA, chamada Excelsior e que oferece 13 x 18 cm. Como obturador utilizo um de estúdio o que me impede de ter velocidades muito altas, mas, com uma View Camera, acabo escolhendo temas que não são propriamente de “ação”.

Usei o diafragma com abertura estava em f/8 e algo como 1/4 s.

 

Diafragma f/22

 

 

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