A incrível façanha do Japão
A Nikon teve um papel fundamental em estabelecer a indústria fotográfica japonesa na liderança mundial do setor a partir dos anos 1960. Por um período de 150 anos a Europa, em especial os alemães, dominaram o mercado de produção e inovação em câmeras e ópticas de uma maneira tão completa que até os anos 1950, mesmo com os abalos causados pela Segunda Grande Guerra, era inimaginável que o capítulo seguinte seria escrito por empresas vindas de terras tão distantes e tão distintas do binômio Europa/Estados Unidos.
O feito é ainda mais notável se pensarmos que quando a fotografia ganhou momento, logo após a fase de seus diletantes pioneiros, tais como Daguerre, Talbot, Bayard ou o nosso perdido nos trópicos, Hercule Florence, implicou imediatamente o que era então a fina flor da ciência e tecnologia da época. Podemos pensar aí em nomes como Arago, Fresnel, Petzval, Fraunhofer, Herschel, Voigtländer e toda a rede de acadêmicos, industriais, militares e políticos que perceberam a importância do registro mecânico das imagens. Pois bem, enquanto na Europa havia essa contagiante efervescência em torno da nova invenção e disputava-se intensamente a primazia de seu desenvolvimento, no Japão, vivia-se uma vida agrária em um sistema ainda feudal, politicamente fragmentado e obstinadamente fechado para o resto do mundo.
Durante um longo período conhecido como Edo, estendendo-se de 1603 até 1868, o Japão vivia sob o Xogunato. Nesse regime, apesar de existir um imperador, este tinha um papel figurativo e cada Xogum detinha um poder quase absoluto em seus domínios, ainda que devesse algumas obrigações ao imperador, em especial, apoio militar. Existiam entre 250 e 300 desses xogums chamados Daymio.
O período Edo foi de crescimento econômico, ordem social e florescimento das artes. As lideranças políticas achavam que estavam muito bem assim e não precisavam de mais nada. Adotaram o isolamento como premissa e navios estrangeiros não eram bem vindos no Japão.
Modernização forçada
O interesse de nações ocidentais, em ter o Japão como mercado a explorar, cresceu até o ponto de que a abertura de seus portos foi forçada por uma expedição militar. Em 1854, o comodoro americano Matthew C. Perry chegou ao Japão com uma frota de poderosos navios de guerra. Mas não foi para uma invasão tradicional. O objetivo era estabelecer um tratado de comércio que abriria o mercado japonês para receber produtos do Ocidente e também exportar os seus. A seda japonesa, por exemplo, seria extremamente lucrativa para os ocidentais.
O isolamento do período Edo trouxe muitas coisas boas, mas também deixou o Japão defasado de avanços tecnológicos importantes que emergiam da Revolução Industrial no século XIX no Ocidente. Isso tornou o país militarmente vulnerável e sem condições de resistir. Entre a guerra, que é sempre um horror para a população, e um tratado comercial altamente desfavorável, as lideranças japonesas ficaram com essa segunda opção e assinaram o que ficou conhecido como Tratado de Kanagawa.
Ao mesmo tempo, houve uma mudança drástica no sistema político, conhecida como Restauração Meiji, que pôs fim ao período Edo e restabeleceu o poder de fato ao imperador. O país voltou assim a poder implementar políticas abrangentes, em todos os setores da economia e políticas públicas, sem resistência e desobediência de líderes locais. A assinatura forçada do Tratado de Kanagawa expôs a incapacidade do xogunato, com seus samurais, de representar e proteger o país frente a ameaças estrangeiras. Isto foi aproveitado por forças favoráveis à consolidação para restaurar um poder central.
Mas a reviravolta Meiji foi muito além de um rearranjo de governança política. Houve, da parte da nova liderança, uma consciente e deliberada vontade de implantar no Japão o modus operandi Ocidental. Parece que o choque e até certo ponto a humilhação que foi o Tratado Kanagawa, convenceu os japoneses de que a industrialização e a adoção de princípios do Iluminismo, seriam o caminho mais curto e certo para tornar o país capaz de firmar-se internacionalmente e voltar a ser o senhor de seu próprio destino no cenário global competitivo que já se anunciava. A história mostrou que eles fizeram a boa escolha.
Mas não foi sem resistências internas. Muitas revoltas de líderes xoguns eclodiram e por vezes tomaram as dimensões de uma guerra civil. A classe dos Samurais, que eram essencialmente militares a serviço dos xoguns, mas com um rígido código de ética e muito respeitados pela população em geral, foram simplesmente abolidos na Restauração Meiji. Até usar seu típico corte e penteado nos cabelos foi proibido. Muitos assumiram cargos burocráticos na nova ordem mas muitos participaram das revoltas armadas que se seguiram. Foi o caso da guerra de Boshin, na qual o exército dos xoguns foi derrotado pelas forças imperiais. A fotografia que abre este post mostra samurais que tomaram parte nesta guerra.
Primeiros contatos com a fotografia
A fotografia, cuja invenção até coincide com o conturbado fim do período Edo, fez uma entrada atrasada e muito tímida no Japão. Apesar do isolamento oficial, certamente alguns xoguns mais poderosos tinham os olhos para o que acontecia na Europa. Havia um contato com mercadores holandeses via um porto em Nagasaki e foi por lá que na década de 1850 chegaram os primeiros equipamentos fotográficos. Ueno Hikoma é considerado o primeiro fotógrafo japonês. Ele aprendeu o processo de placa úmida com o fotógrafo suíço Pierre Rossier, que esteve em Nagasaki em 1859/60.
É certo também que o comodoro americano Matthew C. Perry, que forçou no Tratado Kanagawa a abertura dos portos, trouxe em sua expedição de 1854 fotografias e fotógrafos. Deve ter organizado um desfile de tudo que os japoneses estavam perdendo por não participarem do mercado global. Talvez a fotografia tenha desempenhado um considerável papel sedutor nos líderes japoneses. A julgar pelo gosto que desenvolveriam pela mídia mais tarde, talvez não seja especular demais imaginarmos esta possibilidade.
Nippon Kogaku K. K.
A Nikon é um exemplo entre milhares de empresas japonesas que nasceram e se desenvolveram exatamente nesse espírito inaugurado na Restauração Meiji. Na Europa podemos dizer que a indústria de equipamentos fotográficos surgiu e cresceu como que organicamente. Empresas foram estendendo gradativamente seu escopo para incorporar a nova tecnologia, para usufruir do novo mercado. Algumas vezes com ajuda do meio acadêmico ou governamental como um todo, foi o caso do prêmio dado a Daguerre, ou da colaboração no desenvolvimento da lente de Petzval, mas na maioria dos casos, o grande catalisador era a própria dinâmica do mercado.
No caso do Japão no início do século XX havia um sentimento de urgência para o desenvolvimento de uma indústria óptica local e este crescimento precisava ser induzido. O governo japonês teve aí um papel fundamental. Nippon Kogaku, que mais tarde seria a Nikon, significa simplesmente Indústria Óptica Japonesa, e o K. K. diz apenas que é um tipo de empreendimento com ações no mercado e responsabilidades limitadas dos acionistas. Ela foi o resultado de fusões orientadas a dar foco e escala para estabelecer uma indústria óptica nacional com porte e tecnologia de ponta. O governo japonês participou na elaboração da estratégia destas fusões e em 1917 a empresa estava consolidada e atuando. Encomendas governamentais na área militar, como binóculos e miras, por exemplo, garantiram um faturamento regular enquanto tecnologias eram desenvolvidas. Em especial, na produção de vidros ópticos.
A Nippon Kogaku continuou na prática adotada já no século anterior, no início da Restauração Meiji, de convidar experts estrangeiros. Eles vinham para trabalhar em projetos específicos das empresas e ao fazê-lo também transferiam conhecimentos para os engenheiros locais. Eram contratos temporários, geralmente de dois anos. Oito engenheiros alemães foram convidados em 1921 para trabalhar na Nippon Kogaku. Foram especialistas em projetos de lentes, microscópios e instrumentos de precisão. Foi desenhada a primeira lente fotográfica da Nippon Kogaku, chamada Anytar, que seguia o desenho da Tessar da Zeiss.
Iniciada em 1918 em meio a várias dificuldades técnicas, a produção de vidros ópticos torna-se massiva em 1927. Em 1932 adota-se o nome Nikkor para as lentes fotográficas. A produção de equipamentos ópticos é bem diversificada e atende em sua grande parte à área militar e científica. Após a Segunda Grande Guerra o Japão sofre muitas restrições quanto à produção de armamentos e equipamentos militares em geral. A restrição funciona como um incentivo para a empresa focar mais no mercado de câmeras e lentes fotográficas.
Em 1946 o nome Nikon foi adotado para as câmeras da companhia e em 1948 a Nikon Model I foi lançada. Era uma rangefinder, câmera com visor óptico dotado de um telêmetro. Embora tenha várias soluções originais era também muito inspirada na Contax da Zeiss Ikon da Alemanha, quanto à sua parte externa, enquanto que obturador de cortina e o telêmetro foram baseados na Leica por serem mais simples. A montagem das lentes seguia o padrão Contax. Muitos problemas de projeto foram apontados quando a câmera já estava no mercado e isso forçou o lançamento imediato, em 1949 da Nikon M e Nikon S em 1950, endereçando as correções necessárias. A mais séria delas é que o formato da Model I era 24×32 mm e o mercado americano simplesmente rejeitou essa ideia para o filme 35mm. O modelo seguinte, a Nikon M, já incorporava o padrão 24x36mm.
Até aqui, todo esforço empenhado na construção da capacidade técnica necessária para dar base à uma sólida reputação de marca, ainda esbarrava no parcialmente verdadeiro porém certamente perverso cliché de que Nikon seria apenas a cópia inferior das verdadeiras preciosidades da indústria européia em matéria de câmeras e lentes.
Mas isso iria mudar por conta de dois fatores. A história é que a primeira virada de mesa veio com uma reportagem do jornal New York Times de 10 de dezembro de 1950 na qual a excelência das lentes Nikon era, pela primeira vez, reconhecida e revelada ao mundo. A prova eram reportagens da revista Life para a qual fotógrafos enviaram suas fotos da Guerra da Coréia.
O já renomado fotógrafo de guerra David Douglas Duncan foi ao Japão para uma reportagem sobre artes. Lá chegando ele teve um assistente local, Mr. Jun Miki, que o retratou usando uma lente Nikkor. Impressinado com o resultado Duncan quis experimentar a óptica e ficou brincando com uma 35mm f/3.5 por uma semana. Confirmando que não fora apenas um golpe de sorte do jovem assistente, ele comprou um conjunto completo de lentes da Nikon. Dias depois eclodiu a guerra da Coréia e para lá ele foi enviado levando suas novas aquisições. Conta-se que, ao receber as fotos na produção da Life, o editor de fotografia questionou Duncan por que motivos ele estava usando uma câmera de grande formato em uma guerra, tal era a definição das imagens que ele enviara.
A notícia correu o meio da fotografia profissional e outros enviados, como Carl Mydans e Hank Walker, também fizeram uma parada em Tokio e também compraram lentes Nikkor. Sendo que Walker comprou ainda uma câmera rangefinder Nikon S. Chegando na península Coreana, onde os termômetros baixavam até -30ºC, reportou ele mais tarde que a Nikon S foi a única câmera, entre Leicas e Contaxes, que continuou funcionando normalmente.
Tudo isso culminou com o artigo reproduzido abaixo, do New York Times de 10 de dezembro de 1950, no qual é dito, várias vezes, que as lentes Nikkor eram melhores e que custariam, já no mercado local, algo como dois terços das equivalentes Zeiss ou Leitz. Comenta ainda que a revista Life já havia colocado pedido para uma quantidade significativa e que a revista Look ia pelo mesmo caminho. Termina com a alfinetada de dizer que o porta-voz da Zeiss nos Estados Unidos disse que ainda não haviam tido a oportunidade de avaliar as câmeras e lentes japonesas.
Sem desacreditar dos fatos, creio que há muita subjetividade embutida nessa história. Acredito que havia muita vontade de rebaixar tudo que fosse da Alemanha por conta da guerra e do nazismo. Os japoneses também foram inimigos, mas capitularam e talvez os eventos de Hiroshima e Nagasaki somados à rendição formal do imperador Hirohito deram ao desfecho uma percepção mais cabal da superioridade dos vencedores sobre os vencidos. Prazer este que Hitler soube furtar aos aliados com seu desaparecimento. Foi como se a conta das atrocidades dos campos de concentração permanecesse em aberto, isto alimentou certa animosidade aos germânicos e ela demorou a se dissipar.
Então eu acho compreensível que havia um clima favorável a se encontrar substitutos para produtos alemães e as lentes Nikkor tinham qualidade para deixar que outros fatores agissem como fiel da balança. Não me parece razoável pensar que uma lente Planar ou Sonnar, da Zeiss, poderiam ser claramente piores que uma outra semelhante e desenvolvida com tecnologias e materiais equivalentes como era o caso. Mas, de qualquer forma, a história toda dos fotógrafos da Guerra da Coréia e subsequente artigo no New York Times, deu um impulso enorme e merecido para a produção da Nikon que sem dúvida já estava entre o que de melhor se fabricava na época.
A segunda virada de mesa veio quando decidiram metamorfosear a Nikon rangefinder em uma Single Lens Reflex camera, dando a ela um espelho e um prisma. Assim nasceu a Nikon F. Já existiam câmeras monoreflex há muito tempo. Começaram em grande formato e foram reduzidas até a Ihagee, de Dresden, lançar a Kine Exacta para filmes 35mm. A Kine Exacta tinha no conceito todos os ingredientes para dominar o mercado, como fizeram as japonesas na década de 1960: obturador de plano focal, montagem em baioneta, larga oferta de lentes, prismas e telas de focalização intercambiáveis e era altamente confiável. Porém a Ihagee não se saiu bem da II Grande Guerra pois ficou do lado da Alemanha Oriental. Depois de um sucesso respeitável nos anos 1950 foi incorporada pela Pentacon e essa foi a sua morte. Enquanto isso os grandes nomes como Zeiss Ikon ou Voigtlander insistiram em manter o obturador tipo leaf shutter e isso complicava a construção e o preço de câmeras e lentes. A Leitz continuou com seu carro chefe e na década de 1950 lançou a Leica M, sucessora do clássico design de Oscar Barnack , excelentes, porém era novamente uma câmeras rangefinder, conceito que tem sua fervorosa comunidade, mas não conseguiu impedir a migração massiva para outras praias.
Nesse momento, a indústria japonesa entrou com qualidade, um preço inferior e a combinação que seria a preferida dos fotógrafos nas décadas a seguir: monoreflex, obturador de plano focal e montagem em baioneta.
O conceito Nikon F
A imagem acima é de uma brochura da Nikon e foi adaptada do excelente site de Richard Stoutz. Este foi o movimento decisivo para colocar a Nikon no caminho de uma rápida liderança na nova era da fotografia dominada pelas Single Lens Reflex cameras usando filme 35mm. Aproveitaram o desenho já depurado da Nikon SP rangefinder (à esquerda) e nele adaptaram espelho e prisma, dispensando assim o telêmetro.
Criaram a hoje lendária Nikon F. Extremamente feliz foi também a montagem da lente com uma baioneta que permanece a mesma praticamente até hoje. É claro que a “conversa” entre lente e corpo depende das possibilidades de cada um, com ou sem fotômetro, com ou sem aberturas automáticas, com ou sem autofocus, mas a baioneta em si foi um padrão criado que não precisou mais ser alterado.
Não apenas a Nippon Kogaku (fundada em 1917), mas também Pentax (1919), Olympus (1919) e Minolta (1928) e Canon (1933), entre outras, deram finalmente à indústria japonesa o condição de muito respeito internacional na fabricação de ópticas e câmeras fotográficas. Mostraram excelência, não apenas em tecnologia mas também em controle de custos e em entender os desejos do público tanto profissional como amador.
Empresas alemãs sem dúvida tinham uma expertise técnica de altíssimo nível, mas principalmente as líderes pareciam não se preocuparem muito com o preço final de seus produtos. Empresas como Zeiss Ikon e Voigtlander tinham portfolios extensos, cobrindo praticamente todos os tipos de câmeras. Isso devia ser motivo de orgulho para os engenheiros que exibiam grande inventividade criando sistemas inteiros, autônomos, de câmeras, lentes e muitos, muitos acessórios. Mas aumentavam assim os custos de inventário de peças, produção e pós-venda. Podemos dizer que a liderança absoluta que tiveram até então fez com que acreditassem poder moldar o mercado segundo suas conveniências. O exemplo clássico disso foi a já citada insistência nos obturadores tipo leaf shutter em vez de plano focal para as SLR. Esse tema é discutido mais a fundo na página da Contaflex.
O resultado disso tudo pode ser visto no gráfico abaixo. Nele podemos ver em unidades (milhões) as vendas globais de SLRs. Vemos Japão (hachurado em vermelho) x resto do mundo (em preto). Foi extraído do vídeo Exakta – The Rise and Fall Of a Legendary Camera – A film by Günter Eiselt, que pode ser visto neste link.
A Nikon F foi lançada em 1959 e manteve-se em produção até 1973. Foi fundamental em redefinir o selo “made in japan” que por muito tempo fora sinônimo de produtos baratos e de qualidade inferior. Foi bem no tempo da Nikon F que as câmeras monoreflex levaram a fotografia jornalística para novos territórios e ela foi a representante máxima da categoria.
As Leica Barnack, que tiveram em Cartier Bresson um fotógrafo símbolo, definiram uma fotografia discreta, a imagem roubada no “momento decisivo”, com uma câmera pequena e silenciosa. Com as Leica, era como se o fotógrafo estivesse escondido na cena, como se ele fosse transparente e a câmera, de fato, como que sumia em suas mãos. A Nikon F representa, como SLR, um fotógrafo mais assertivo, participante e barulhento. Seu peso, robustez, design, tamanho e modo de operação alinhavam-se mais com o ato fotográfico que se firmava nos anos 1960, no foto-jornalismo, como fotografia denúncia, fotografia crítica da sociedade. As páginas das revistas passaram a mostrar mais e mais os conflitos e tragédias de todos os tipos.
Esta é uma Sonnar 50mm, para Contax. É uma lente dos anos 1950. Seu design é esbelto, sóbrio e elegante. Parece que a ideia era reduzir ao máximo a presença da lente.
Esta é uma lente 50mm Nikkor equipando uma Nikon F. Ela tem um design imponente que pode ser tudo menos discreto. Na fotografia denúncia, a câmera assume ares de arma. O corpo da lente, em vez do minimalismo da Sonnar, parece querer crescer e ganhar musculatura. O anel de foco, preto e espesso, remete ao cano de uma arma. Este seria e foi o instrumento mais em linha com a fotografia da contra-cultura, da guerra fria, dos movimentos estudantis, da imprensa alternativa e da foto engajada como um todo. Portar uma Nikon F pendurada no pescoço já era por si só um statement.
Comparando novamente com Leicas e Contaxes. Fazer foco em uma rangefinder é uma operação mais técnica e objetiva. A imagem está lá e o fotógrafo faz coincidir uma pedacinho de imagem acessória, trazida pelo telêmetro, com a real que é sempre a mesma, independente do fotógrafo. Nas SLR o anel de foco trás a imagem do indiscernível para a nitidez da realidade, o fotógrafo sente-se mais como o criador da imagem. É ele que a busca e lhe dá sentido.
Focalizar, olhando pelo visor de uma monoreflex, passou a ser o gesto icônico da criação fotográfica. Acima está Clint Eastwood (papel principal e diretor) com Meryl Streep, em The Bridges of Madison County (1995). Ele faz um fotógrafo da National Geographic’s. A câmera? Nikon F.
Logo no seu lançamento a Nikon F tornou-se o símbolo máximo da SLR quase que instantaneamente. Ajudou a formar uma nova imagem da fotografia e seus fotógrafos, mais glamurosa, cheia de dinamismo, de juventude, aventura, como nunca o fora antes. Encontrou no foto-jornalismo a sua expressão máxima. A invasão das monoreflex trouxe para a profissão de fotógrafo uma combinação de técnica, arte e ativismo. A Nikon F foi a ponta de lança nesse novo papel.
Muitos filmes dos anos 1960/70, sobre guerra, romance e existencialismos, encontravam uma perfeita adequação ao mostrar um fotógrafo portando uma Nikon F, ou talvez um monte delas. Acima temos Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, um épico mergulhando no barbarismo da guerra do Vietnã (1955-1975). Nikon F foi a câmera da guerra do Vietnã por excelência (deixando a segunda e honrosa posição para as Leica M). Sua robustez e design vão tão bem com armamentos, radios, jeeps e uniformes que nessas situações ela parece até ter sido desenhada para o combate.
A Câmera
Câmeras fotográficas têm algo em comum com as roupas, não basta olhar, é preciso “vestir”. Ter uma Nikon F nas mãos, só de saber sua história e o que ela significou para a fotografia, é uma experiência e tanto. Ela tem o peso correto para transmitir robustez sem chegar a perder mobilidade. Tudo que se move, que gira ou desliza, o faz de modo suave e firme. Não deve nada ao padrão germânico como mecânica fina.
Talvez ela seja mais conhecida na versão com fotômetro como na propaganda abaixo. A Nikon F e suas sucessoras F2, F3, FM… foram concebidas dentro de um conceito de “sistema” no qual muitas de suas partes podem ser substituídas e muitos acessórios acoplados. Permanente mesmo na câmera é só o seu corpo com obturador e transporte do filme. Podem ser trocadas as lentes, se adicionar um fotômetro, vários prismas e telas de focalização, existe também um visor sem prisma, pode-se acoplar motor-drive, magazine para rolos de filme em metro, sapata de flash e fole para macro além do básico de sempre como filtros, cabos disparadores, para-sóis, oculares para corrigir dioptria, etc.
A Nikon F da coleção usa um prisma sem fotômetro. Eu prefiro assim por conta do tamanho reduzido (comparando com o Photomic T, acima) e também porque hoje em dia é dificílimo achar algum que ainda funcione. O anúncio chama a atenção justamente para essa modularidade e também para o automatismo do espelho que retorna para a posição após o disparo, isso é banal hoje em dia mas na época ainda não era. Também é automático o diafragma, que fica aberto para focar e fotometrar, só se fecha no momento da exposição e então volta a abrir.
Na parte de controles as velocidades seguem o que é padrão para as monoreflex da época, B, T e 1 até 1/1000 s. Todas velocidades são ajustadas em um só disco no topo da câmera. Também no topo fica o contador de poses, que retorna automaticamente a zero, quando se a traseira é aberta, e a alavanca para rebobinar. Sobre ela é possível se instalar uma sapata de flash com sincronismo.
Um ponto que a Nikon F carregou das Nikon rangefinder e que é motivo de reclamação generalizada é a posição do botão de disparo. Ele fica muito para trás, fora da posição natural onde cai o nosso dedo indicador. Isso foi corrigido na Nikon F2.
Outro ponto que não agrada muito é a tampa traseira, sem dobradiça, que precisa ser removida por completo. Novamente algo que veio das rangefinder e que era o padrão mesmo nas Contaxes e Leicas. A chave para abrir ou fechar a tampa traseira fica na base da câmera e lá também encontra-se um memorizador do ISO do filme que foi carregado, naquele tempo ASA, mas numericamente as duas escalas são idênticas.
Se você busca mais detalhes sobre modelos, característica, acessórios e informações sobre a longa, frutuosa e primorosa produção das Nikon F, visite a página: Nikon F Collection & Typology by Richard de Stoutz. Ela é fantástica. Por exemplo, de acordo com informações publicadas nesse site, a minha Nikon F, que figura neste post, com número de série 6883627, foi produzida entre fevereiro e abril de 1968. Lá você encontra também tudo sobre lentes e acessórios.
Normalmente eu termino os posts da coleção com algumas fotos feitas com o equipamento. Mas como eu tenho ainda duas Nikon F2 e uma FM, e como a portabilidade das lentes é uma coisa fantástica no sistema Nikon, hoje eu não sei dizer ao certo com que corpo eu fiz que foto. Vou então colocar algumas nos posts da F2 e da FM dizendo com que lentes foram feitas.
Para não terminar sem ao menos uma foto, ainda que não seja minha, ficamos aqui com uma imagem e duas estrelas.