Naturalismo na arte renascentista

I. Introdução

II. Imagens como palavras

III. A sociedade medieval

IV. O lugar do burguês

V. Teatro de Imagens

VI. Petrarca e o Humanismo

VII. Príncipes bibliófilos

VIII. A paisagem

IX. Naturalismo

X. O Retrato

XI. O bom e o belo

XII. Conclusão

I. Introdução

Quando se fala em arte no Renascimento vem sempre à nossa mente a extremamente usada e abusada citação de Leon Battista Alberti (1404 – 1472) no seu De Pictura, onde ele defendeu que uma pintura deveria ser como se sua moldura fosse o batente de uma janela através da qual observaríamos uma cena.

Isso aponta sem dúvida para uma ideia de arte “naturalista”, uma arte feita para representar visualmente coisas que existem ou supostamente existiram. Isso pode parecer até algo banal, óbvio, para nós tão acostumados que somos com fotografias cuja vocação é fazer justamente esse tipo de imagem: reproduzir algo que estava na frente da câmera, de tal forma que a foto depois funcione como a janela de Alberti.

Leon Battista Alberti (Genova, 14 febbraio 1404 – Roma, 25 aprile 1472)

Porém essa pequena citação, esse conceito, é como a ponta de um iceberg e há muito mais a ser investigado se quisermos compreender algo que à primeira vista pode parecer um paradoxo:

Como que partindo um mundo altamente hostil e desconfiado com relação às imagens, chegamos a um ponto em que elas são onipresentes e com elas interagimos com o mesmo desprendimento com que interagimos com objetos reais?

É preciso recuar e fazer um esforço de desprendimento de alguns  de nossos pressupostos para entendermos como que funcionavam as imagens na Idade Média e como que elas foram se transformando até chegarmos à fórmula de Alberti.

II. Imagens como palavras

As imagens foram oficialmente e definitivamente admitidas na igreja cristã somente a partir do século VIII (Segundo Concílio de Niceia – 787). Até então eram motivo de controvérsia pois apenas a palavra, o texto, era aprovado pela ortodoxia como veículo das histórias sagradas, vidas dos santos e uso nos templos e liturgia.

Netuno – Bronze grego séc. V antes de Cristo. 

Havia aí um repudio à Antiguidade, com seu politeísmo, adoração de ídolos e uma arte muito sensual, em contraste com o cristianismo que menosprezava o corpo e a vida na terra em favor da alma e da vida eterna. Plotino, um filósofo do século III que exerceu enorme influência no cristianismo, dizia que já era vergonha demais ter um corpo para ainda fazê-lo representar em uma pintura ou escultura que provavelmente duraria ainda mais (Tzvetan Todorov em Éloge de l’individu).  Por essa rejeição cabal às imagens e fundamento nas escrituras, o Cristianismo era referido pelos pagãos como a “religião do livro”, ou seja, da palavra.

Representação da condenação de Arius no I Concílio de Nicea

A partir deste Segundo Concílio de Niceia a imagem passou a ser admitida, porém, ela entrou na prática do culto cristão, nos manuscritos e nas igrejas, ainda um pouco como “palavra”.

Uma imagem “palavra” é uma imagem que se refere mais às categorias a que pertencem as coisas do que às coisas particulares. Uma imagem “palavra” contém de modo explícito  uma coleção de coisas, que têm nome, são enumeráveis, reconhecíveis, mas com uma economia de detalhes que as reduz apenas aos seus atributos mais relevantes. Ela normalmente funciona dentro de uma narrativa que ela ilustra e enriquece. Mas sua função é acessória.

Assim como eu posso começar a contar a história da Chapeuzinho Vermelho dizendo “Era uma vez uma menina que vivia com seus pais em uma linda casinha em um vilarejo cercado por uma densa floresta”, e nesse caso você não irá me interromper perguntando “que casinha?”, térrea ou sobrado, de tijolos ou de madeira, etc, etc, Esses detalhes não são relevantes para a história. Se eu fosse ilustra-la, usando o apoio de imagens, uma casinha “genérica”, com alguns atributos de “linda casinha”, funcionaria muito bem. É nesse sentido que eu quero dizer que as imagens funcionavam um pouco como palavras.

Nesta página da Bíblia de São Paulo (c. 870), temos uma cena da história dos israelitas. Moisés abençoa seu povo. Ele ocupa uma posição central e o “povo” é representando abrindo um arco en torno dele e é formado por uma coleção de cabeças todas praticamente iguais. Não há unidade de tempo. Atrás de Moisés, que viveu no século XIII BCE, estão Abraão, Isaac e Jacob que o antecederam de cinco séculos. O próprio Moisés aparece triplamente, ao alto à direita com sua visão da cidade de Canaan e depois morto na esquerda. As construções, as árvores, não têm nenhuma relação de proporção com os outros elementos da cena.

É uma imagem que se presta bem para contar a história dos israelitas, tem uma composição bem resolvida para separar os diferentes episódios no mesmo espaço pictural e hierarquizar as figuras. Possui centros de atenção e uma expressividade pelos gestos das mãos que compensa um pouco a platitude dos rostos.

Acima é uma página do Psaltier de Luis IX, rei da França, canonizado como São Luis. Data de 1260-1270  e foi escrito em Latin. Trata-se da arca de Noé no momento em que a pomba retorna trazendo um ramo em seu bico. Neste caso representa um momento preciso da narrativa. Mas as proporções são sacrificadas em favor do entendimento. O que é importante é evidenciar que é uma arca e por isso a forma trapezoidal em sua base. Ele está no mar do dilúvio, por isso podemos ver seu casco através da água que é feita transparente. É uma nave sagrada e por isso seu convés se assemelha a um templo, a arca é o templo de Deus. Dentro temos exemplares dos animais salvos por Noé.

Todos esses elementos são importantes para a história e seria muito difícil em uma imagem realista dar conta de apresentar todos eles. A solução do Psaltier abre mão de qualquer realismo para que possamos, um a um, encontrar os atributos que fazem desta imagem uma narrativa do episódio da pomba retornando à arca de Noé.

Agora uma imagem pagã, o Codex Manese – Um dos principais manuscritos da arte alemã – 1310-1340 – Hoje em Heildelberg – Livro de poesia com canções de amor. Ao longo da obra os rostos seguem fórmulas com poucas variações e exibem uma expressividade limitada. Mas as composições e  ornamentos ecoando os gestos dos personagens dão às imagens um caráter melódico muito gracioso. Como solução pictórica, este abraço da moça enamorada, visto por este ângulo em que se destacam os braços e rostos, um corpo curvado e outro reclinado, revela um refinamento artístico muito grande.  O interessante é que o rapaz não é alguém fictício, ele era alguém conhecido e identificável, mas não por suas feições. Em vez disso, as pessoas eram denotadas por brasões, armas, cores e divisas, que é o que se vê ao alto da página.

Capa do Lindau Gospels, livro iluminado do século IX no império carolíngeo

O esforço ia na direção de dominar os materiais para criar uma beleza plástica, quase abstrata no sentido de pouca preocupação com a aparência visual real daquilo que se representava. O ornamento, a caligrafia e a preciosidade é que davam valor ao trabalho final. A imagem começava e deveria terminar na narrativa à qual se destinava.

Erwin Panofsky, no seu livro Idea, cita uma fórmula de Dante Alighieri (1265-1321) que evidencia essa abordagem: “A arte acontece em três níveis: no espírito do artista, no instrumento que ele utiliza e na matéria que recebe a forma de sua arte”.

É de se notar que Dante simplesmente não inclui a relação da aparência daquilo que se representa com a imagem. É como se o objeto, o evento, a cena, a pessoa saíssem de dentro do artista. Não faz referência ao referente. O que o artista trazia com seu espírito, instrumentos e materiais era a imagem de um conceito coletivo, não a imagem de algo terrestre e material. Não era a imagem de algo imanente, não era sua visão pessoal, mas sim de uma espécie de forma simbólica e transcendente das coisas.

III. A sociedade medieval

É importante se observar que a produção de imagens do mundo das coisas reais, contemporâneas, não fazia falta alguma para uma sociedade conservadora, apoiada sobre a tradição.

Tudo que representavam por imagens tinha um valor simbólico, tudo que existia tinha um valor simbólico, faziam parte de uma narrativa fundadora e como tal eram mais referências a conceitos do que representações de sua existência física. Lembrando Plotino mais uma vez, na sua filosofia que o cristianismo abraçou, o mundo era tomado como uma versão imperfeita, engendrado de uma realidade espiritual maior.

Para essa sociedade, uma arte focada nas histórias sagradas de tempos imemoriais e nas façanhas militares de seus antepassados era perfeita para a permanência da ordem no mundo enquanto esperava-se o juízo final. Seria arrogância valorizar-se como indivíduo. Humildade era a grande virtude e grandeza era humilhar-se perante Deus. Era uma sociedade voltada para o passado.

Nesse contexto, usar o brasão e não as feições particulares de um cavaleiro para representá-lo, associava valor à linhagem a que ele pertencia e não apenas à sua pessoa. O que importa é o título que ele ostentava e transmitiria aos seus decendentes, portanto é isso que era evidenciado .

1240/50’s The Morgan Bible Autor Anónimo

Os nobres eram militares e governavam na base da força bruta. O mundo era muito violento. Essa elite militar proporcionava uma certa ordem e proteção a ataques externos e era muito valorizada por uma população miserável e sem condições de se defender. São incontáveis as demonstrações de amor e admiração que os plebeus tinham para com reis e rainhas. Os reis e seus nobres vassalos iam de fato para a frente de batalha e viviam pelo código da honra. Esse crédito é preciso lhes dar. Internamente, disputas sucessórias não raro levavam a que fossem assassinados até por seus familiares mais próximos.

Miniature de la bataille de Crécy par Loyset Liédet, Jean Froissart (1337–1410)

Diante dessa vida que não era fácil para ninguém e que ainda era varrida por pestes e grandes fomes depois de colheitas ruins, uma certa paz de espírito, ficava por conta do conformismo disseminado pela ideologia cristã. O mundo é assim porque Deus quer que ele assim seja e não cabe a ninguém questionar, investigar ou mudar coisa alguma.

IV. O lugar do burguês

A Europa nos primeiros séculos da Idade Média era agrária. De tal forma que, excetuando-se clérigos e nobres, a massa da população era constituída por trabalhadores rurais no regime de servidão.

Os servos plantavam e criavam animais nas terras de terceiros, usualmente nobres ou altos membros da Igreja. Pagavam por esse uso com parte da sua produção. Não só não podiam deixar a propriedade sem autorização, mas ainda uma série de liberdades que hoje consideramos básicas lhes eram vedadas, por exemplo, casamentos só aconteciam com a autorização do senhor das terras onde viviam.

As cidades eram pequenas e como a vida era bem simples, o que seria a manufatura, o comércio e serviços em geral, eram incipientes.

Petrus Christus – St Eligius in His Workshop 1449

Isso foi mudando com o tempo e uma população urbana passou a fazer parte da paisagem. Com eles, ganhou importância um novo personagem, o burguês, que tocava pequenas oficinas, fazia comércio local mas também com terras distantes.

Artesãos e profissionais liberais nas áreas do direito, medicina, contabilidade e afins, também eram presença importante nos aglomerados urbanos que cresceram muito a partir do ano 1000.

Curiosamente, para o observador contemporâneo, dinheiro podia trazer conforto mas não trazia necessariamente reconhecimento ou honrarias. Um não nobre, comerciante, fabricante, artista, profissional liberal ou algo equivalente, podia ficar muito rico, mas no dia da procissão ele ia atrás do escudeiro, o mais baixo título na hierarquia militar.

Loja em um manuscrito medieval

Nenhum burguês seria o personagem principal em uma peça literária medieval. O trabalho per se não tornava alguém uma pessoa digna e respeitável. Pelo contrário, ter que ou querer trabalhar com as próprias mãos, ainda que acumulando boa riqueza, era algo desonroso que indicava falta de ascendência nobre.

Esse burguês não era nem nobre de capa e espada e nem membro da organização religiosa. Ele não enriquecia por meio de cobrança de impostos ou guerras, como os primeiros, e nem por meio doações e serviços espirituais como os últimos. Mas grandes fortunas se formaram com sua atividade proto-capitalista e esse foi um elemento perturbador da organização social medieval.

A Igreja pregava que enriquecer através do trabalho e vangloriar-se disso era algo pecaminoso. Deus dera a cada um sua condição de nascimento e não cabia a ninguém o direito tentar alterar isso. Os pobres deviam resignar-se nessa condição pois eram os escolhidos e para eles já estava reservado o reino dos céus. Os príncipes, mesmo com suas fortunas, não eram propriamente ricos, eles eram administradores dos bens de Deus aqui na terra, pois tudo pertencia a Deus. Esperava-se deles o dom da generosidade para que ajudassem os carentes nos momentos difíceis. Deviam zelar para que não sucumbissem nessa última prova que era sobreviver dignamente, sem pecado, mesmo na mais profunda miséria.

Para os ricos, a avarice era pecado mortal. Mas ninguém era cobrado a ser generoso até a completa falência. São Luis era “pelos pobres”, famoso por copiosamente distribuir esmolas… e era ao mesmo tempo o riquíssimo rei da França. Suas esmolas não tiravam ninguém da pobreza e não diminuíam em nada sua fortuna pessoal.

São Luis, rei da França distribuindo esmolas. Pintura de Luis Tristan ( Toledo 1585 – 1624 ),

Toda essa mitologia, na qual a vida na Terra seria apenas uma preparação para o juízo final, pode parecer hoje um argumento artificial visando apenas manter o status quo de quem já nasceu no poder e na abundância. Serviria apenas para assegurar a dominação sobre o povo em geral. Mas nesse ponto é preciso muito cuidado. Não devemos subestimar a penetração e autenticidade do sentimento religioso em todos os estratos da sociedade na Idade Média. Religião era lavada a sério. A vida após a morte, para onde iria nossa alma, era de todos uma preocupação obsessiva.

Do rei aos escudeiros do papa aos noviços e mais todos os servos e cidadãos do reino, todos viviam intensamente a fé religiosa, sinceramente e sem questionamentos. A ordem do mundo não era assunto dos humanos pois era fruto da vontade divina. Questioná-la seria um ato de heresia e muitos morreram por desviarem-se do bom caminho. Os hereges supliciados são ainda a prova de quão intensamente as pessoas viviam sua fé e muitos preferiram a fogueira a renegar os princípios religiosos nos quais acreditavam.

E quanto ao burguês? Bem, ele também vivia nesse mesmo ambiente e sistema. Também era um crente temente a Deus. Com a ressalva de que, assim como para o povo em geral, essa era uma organização que não lhe convinha muito, pois toda a glória, poder e reconhecimento iam para os exemplares líderes seculares ou religiosos. Quanto a ele, mesmo contribuindo pesadamente para a construção e ornamentação das igrejas, mesmo financiando empreitadas guerreiras dos príncipes, ele ainda era apenas o burguês e devia inclinar-se e reverenciar lideranças cujos vícios, pela proximidade, ele conhecia tão bem.

Porém, diferente do povo em geral, ele tinha conforto, tempo e dinheiro para começar a se perguntar se era assim mesmo que Deus queria ver seu reino terrestre. Será que não estavam todos enganados e esses prepostos do poder divino não estariam levando o rebanho todo na direção errada? Será que a opulência de Roma e a ganância dos príncipes estariam em linha com as virtudes cristãs?

Curiosamente, até ironicamente, no próprio clero, em especial nas ordens monásticas, alguns espíritos mais ousados também dispunham de tempo e barrigas cheias para especular sobre a interpretação oficial das escrituras e a ordem no mundo. Foi tentando compreender o cristianismo em profundidade e estudando com afinco os patriarcas da igreja, que muitos deles adentraram-se por desvios da ortodoxia. Não queriam reinventar nada, apenas buscavam uma autenticidade que acreditavam perdida pela Igreja de Roma.

Saint Jean ouvre un codex. 13e siècle

Foram essas divagações que fermentaram e fermentaram e impulsionaram uma revolução na maneira como compreendia-se o mundo e o papel dos seres humanos dentro dele.

V. Teatro de imagens

Paralelamente a essa efervescência de ideias que ocorria em círculos muito fechados em meio a uma sociedade basicamente analfabeta, uma transformação importante acontecia nas representações em imagens do fato religioso. As duas coisas iriam se somar mais tarde no Renascimento.

A imagem como palavra, como foi descrita acima, foi cedendo espaço a uma imagem como impressão visual. Segundo os medievalistas e historiadores da arte, experimentos nessa nova abordagem mostraram-se capazes de encantar os fiéis de forma muito mais efetiva do que as imagens ornamentais, caligráficas, dos primeiros séculos da arte cristã.

Normalmente cita-se Giotto di Bondone (1266 ou 1271 /1337) e Duccio di Buoninsegna (1255-1260 / 1318-1319) como pioneiros a se perguntarem como que as cenas da bíblia e outras narrativas sagradas teriam realmente se passado e como que poderiam ser melhor apresentados em imagens.

Giotto di Bondone – Beijo de Judas – Capela Scrovegni

Tais explorações iriam resultar mais tarde no que chamam metaforicamente de “a invenção do espaço”, no sentido de que antes o campo pictórico seria apenas o lugar onde uma coleção de objetos era exposta sem que eles necessariamente se articulassem como uma cena, como um certo evento em um certo lugar, observado de um certo ponto de vista. A coleção visava contar uma história, enquanto que a cena seria a representação de um instante dessa história.

Além desse “realismo” visual as próprias poses, atitudes e ângulos em que as personagens sagradas eram apresentadas mudou substancialmente. Até o século XIII a virgem Maria era representada como uma rainha, dava-se à vista de seus súditos majestosamente. Mas havia uma distância entre seu mundo celeste e o mundo terrestre dos fieis que a veneravam. O menino Jesus tinha um tamanho reduzido mas as proporções de um adulto. Fazê-lo como um bebê pareceria rebaixá-lo. Usava-se a frontalidade, a rigidez na atitude hierática que podia até lembrar, com as devidas ressalvas, a estatuária egípcia ou da Mesopotâmia no auge de seus impérios.

Anônimo Auvergne, França Xll séc.

Vierge et Enfant XII-XIll séc. norte da França

O novo realismo não tratou de apenas representar as mesmas poses com uma fidelidade visual acentuada. A atitude das figuras sagradas mudou radicalmente de uma pose aristocrática para algo denotando maior proximidade, mais humildade, que estariam mais em linha com uma nova interpretação dos preceitos cristãos.

Cimabue, La Madone di Santa Trinita 1280 Galleria degli Uffizi Florence

A madona com a cabeça levemente inclinada e um olhar bondoso, sem a distância de uma rainha, mas em vez disso buscando o contato com o observador, foi a convenção adotada para uma nova relação com os fiéis. É o arquétipo da pose meiga e afável que orienta a maioria das selfies femininas até hoje.

La vierge de Paris XIlleme The Cloisters New-York

A partir do século XIII multiplicam-se as imagens em que ela passa a ser como que surpreendida pelo artista, brincando com seu filho, como uma mãe qualquer estaria brincando. Essa humanização do divino era endereçada a fazer com que os fiéis sentissem uma empatia até então desconhecida. No marfim acima, o leve sorriso e o olhar fixo da Virgem Maria no seu bebê não tem mais nada da pose rígida de outrora. Suas mãos equilibrando o corpinho do menino Jesus sobre seu joelho faz o observador imaginar o que é ter essa pequena vida agitando-se em nossos braços.

Como contraponto a estas imagens plenas de ternura materna, que ativavam nos fiéis os mais puros sentimentos de afeto e admiração, as cenas de sofrimento multiplicavam a comoção e lavava-os aos prantos. É o caso da Deploração do Cristo, que representa o momento em que a mãe inclina-se sobre o corpo de seu filho morto.

La Déploration sur le Christ mort 1455 / 1460 – Huguet, Jaume

 

Maitre de Chaource –  c.1520

Ou a descida da cruz, outro marco da iconografia cristã que ganhou grande visibilidade mais para o final da Idade Média.

Rogier Van de Weiden – La Descente de croix (entre 1435 et 1438), Madrid, musée du Prado.

Foi uma mudança radical em relação ao que se fazia antes do século XIII. Pode-se argumentar que como religião o Cristianismo perdeu aí muito da sua alteridade, da sua natureza extra mundo ou de mistério inacessível. Mas ganhou em popularidade e tornou-se realmente uma religião de massas. Os santos perderam suas auréolas e perderam aquela atitude que parecia indiferente aos suplícios a que eram submetidos. Cristo pendeu na cruz em vez de milagrosamente flutuar à frente dela e todos passaram a expressar sofrimentos e alegrias como quaisquer seres humanos.

O repertório para essas novas atitude significou um alargamento significativo da iconografia. Émile Mâle em seu clássico “Arte religiosa no final da Idade Média na França”, discute a origem de várias cenas que os artistas incorporaram ou revisaram nessa busca da emoção e do drama. Foram incorporadas a natividade, adoração dos reis magos, encontro de Jesus com João ainda crianças, deploração do Cristo e anunciação entre outras.

Muitas das novas cenas simplesmente não estão descritas na bíblia. Mas foram invenções em obras como “Meditações sobre a vida de Jesus Cristo” de São Bonaventura. É até curioso com a pura especulação de Bonaventura logo adquiriu a condição de verdade e cenas ou longos diálogos foram incorporados ao cristianismo.

O mais interessante ainda é que até chegar nas iluminuras e painéis das igrejas as novas representações das histórias passaram pelo teatro. Émile Mâle rastreou nos versos das peças de teatro encenadas na época, diversos elementos. Usou principalmente acessórios de decoração e cores das vestimentas como índices de qual seria a origem do novo elemento iconográfico. Por exemplo, a lamparina na mão de São José na cena da natividade, aparece descrita na Paixão encenada e atesta que os artistas usaram cenas de teatro como referência para suas composições.

Robert Campin – Natividade – 1420

Nas celebrações religiosas como a Páscoa eram encenados na França o Mystère de La Passion, Mystère tem a ver com ministério, como algo público, então seria apresentação pública da Paixão de Cristo.

Ilustração de um manuscrito mostrando vários palcos preparados para apresentação dos Mystères

Essas peças levavam de 6 a 25 dias, movimentavam algo como 200 atores entre profissionais e gente comum. Cenários grandiosos e efeitos especiais eram incluídos para dar vivacidade ao conjunto. Os atores levavam tão a sério que são relatados casos de acidentes até fatais com gente se queimando ou sendo feridas por algum “soldado romano” mais empolgado.

Gravura em madeira mostrando uma encenação de um Mystère

Estas encenações tiveram enorme influência na concepção das cenas representadas nas pinturas. Não vem ao caso aqui entrar em mais detalhes. Mas é muito interessante salientar que o realismo nas cenas e a dramaticidade dos gestos e atitudes, tais quais os artistas representavam, tiveram muitas vezes origem em cenas reais que eles de fato tiveram diante de seus olhos.

Por caminhos diferentes, a concepção de pintura como uma janela para uma cena, que seria mais tarde formulada por Alberti, estava em perfeito acordo com todo o esforço da arte religiosa para parecer real para os fiéis. A ponto de que as “cenas” teatrais foram as referências utilizadas para parte da nova iconografia, como mostrou Émile Mâle.

Mas esse realismo, paradoxalmente aplicado a representar o imaginário religioso, que por si só já significava um certo desencantamento do mistério da religião, ainda sofreria uma metamorfose que resultaria em um golpe fatal na concepção medieval do mundo.

VI. Petrarca e o Humanismo

O desenvolvimento dos centros urbanos e florescimento de uma camada da população com disposição e recursos para especular sobre outras visões de mundo levou a uma investigação que poria fim à ideologia que era vigente desde o enfraquecimento do Império Romano e concomitante adoção do cristianismo na Europa Ocidental.

O modo de vida medieval, no qual apenas cavaleiros e santos representavam papéis modelares e as propriedades rurais formavam uma estrutura geopolítica piramidal, com os feudos emplilhados em camadas de suseranos e vassalos, não estava preparada para acolher novas formas de se criar riqueza e poder e nem a formação de grandes monarquias nacionais que já engatinhava.

Irmãos Limbourg – Livro Iluminado – Les Très Riches Heures du duc de Berry, Septembre

Foram sobretudo os desalinhados, os burgueses e profissionais liberais, que não viviam de suas espadas e nem de suas paróquias, que começaram a olhar em volta e a imaginar outras formas de organizar do mundo.

Quentin Matsys – The Money Changer and His Wife (1514)
Louvre Abu Dhabi

Quando as guerras tornaram-se mais sofisticadas, com a extensiva adoção da pólvora no século XV, o dinheiro, mais do que o “número de almas” de que um senhor feudal dispunha, tornou-se um fator muito crítico para o sucesso. As guerras precisavam ser financiadas e grandes reservatórios de dinheiro estavam nas mãos de quem não tinha poder político reconhecido na sociedade. A nobreza era o “governo” em um poder único, no sentido de decisões sobre leis, administração pública, política externa, justiça e muitos privilégios. A distorção estava em que aos não nobres era vetado o caminho para fazer parte desse governo.

Primeiras armas de fogo – Museu da Renascença, Écuen França

Para se ter uma ideia de como os novos ricos incomodaram os aristocratas de linhagem, a partir do século XIII mas sobretudo XIV, foram promulgadas, em vários países europeus, as Leis Suntuárias. Eram leis que proibiam e limitavam a datas, eventos e classes sociais o uso de certos artigos de luxo, tais como vestimentas com sedas, pedras preciosas, ouro e prata e até certas cores que também denotavam luxo. O objetivo era evitar que, por exemplo, um banqueiro aparecesse em público ostentando uma riqueza maior que a do monarca.

Isto pode sugerir uma polarização mas este não foi o caso. Não havia vocação, interesse ou tradição que permitisse aos mercadores ou profissionais liberais entrarem em um conflito direto contra a aristocracia para usurpar ou assumir seus postos. Não se tratava de uma situação de “nós contra eles” onde um lado iria querer eliminar o outro. Até porque, aristocratas e clérigos eram os melhores clientes da burguesia.

O que esse novo poder precisava era vencer uma guerra ideológica em que seu modo de vida fosse valorizado. Seria em um primeiro passo uma questão de auto-afirmação. O conceito de honra não estava ainda ligado à ideia de vida honesta, vida cristã, respeito aos semelhantes e coisas do “homem de bem”. Isso só viria bem mais tarde. Por enquanto honra era uma questão a se resolver na força bruta, na coragem, nas armas. Precisavam de uma nova visão de mundo que colocasse um fim à cosmologia medieval.

Esse virada ideológica consolidou-se nas transformações que em seu conjunto chamamos de Renascimento. Um personagem de referência dessa busca de novas visões de mundo, foi Petrarca.

Portrait by Altichiero,
Francesco di Petracco (1304-1374)

Francesco Petrarca (1304 – 1374) nasceu em uma família rica mas sem ascendência nobre. Seu pai era notário, como o tabelião de um cartório de hoje, e queria que Petrarca seguisse uma carreira também no direito, aspiração à qual este se recusou. Em vez disso começou a escrever em uma variedade muito grande de gêneros e logo ganhou prestígio por seus poemas.

Além de sua produção autoral, Petrarca foi extremamente importante como pesquisador em um novo tipo de pesquisa. No catálogo da exposição A Invenção do Renascimento, na Biblioteca Nacional da França, em 2024, ele é descrito como “o primeiro caçador de manuscritos”.

Em 1345 Petrarca encontrou na catedral de Verona uma coleção das cartas de Cícero, jurista, político e filósofo do século primeiro antes de Cristo. Essa descoberta marcou-o profundamente. Assim iniciou-se uma busca obsessiva por manuscritos e pela leitura, circulação e compartilhamento de livros, tanto antigos como os de seu próprio tempo.

Petrarca formou e auxiliou outros a formarem bibliotecas que tinham um caráter universal. Lançou o conceito de biblioteca pública, aberta a qualquer um que quisesse nela pesquisar. Embora não tenha conseguido em vida criar esse espaço absolutamente inovador para a época, por sua influência, no século XV surgiram as primeiras bibliotecas abertas.

“Caçar”, ler e estudar manuscritos dos grandes filósofos e poetas da Antiguidade Clássica era, para Petrarca e sua “rede”, foi como descobrir tesouros escondidos nos arquivos empoeirados dos mosteiros e palácios. Alguns relatos sobre esses achados têm até um sabor de aventura e atestam a excitação que essas empreitadas ensejavam.

Por séculos a atenção dada a esse repositório de realizações do passado era muito mitigada. A Antiguidade Clássica e suas realizações sempre impôs respeito e admiração nos estudiosos da Igreja Romana. Mas não se tentava extrair deles uma nova ordem, pelo contrário, buscava-se mais é harmonizar suas conquistas com os fundamentos do cristianismo. Assim como procuravam demonstrar que o advento de Cristo já estava pré-figurado no Antigo Testamento, também procuravam no pensamento grego um papel de antecedente, de coerência com cosmologia cristã. Isso é o que explica que tenha sido guardada e preservada essa herança pagã, como se constatou nesse redescobrimento tardio, agora sob uma nova luz.

Mas esta veio bem a propósito pois na Europa havia um sentimento de esgotamento nas infindáveis exegeses sobre os mesmos livros e autores de sempre, a começar pela própria bíblia. Se por um lado a fé no fundamento religioso estava bem viva, por outro a Igreja Romana, como liderança espiritual oficial, já apresentava uma imagem bem chamuscada de corrupção e pura ganância por poder. Como foi dito acima, a representação de mundo que este corpo de saber refletia, já não se adaptava às transformações que tiveram ocasião a partir do século XIII.

Ainda do catálogo da exposição na BNF, Guido Cappelli faz o seguinte comentário a respeito: “Os clássicos [autores da antiguidade greco-romana] dão uma resposta à crise das disciplinas tradicionais, à decadência do conhecimento, à hegemonia do poder eclesiástico e ao domínio de novas perspectivas de ascensão e reconhecimento social: tudo que fazia parte dos movimentos de fundo que fizeram nascer o Humanismo”.

A descoberta de manuscritos de ciências naturais, filosofia, teatro, poemas épicos, todos de um passado remoto, todos tão bem escritos, com estilo, com desenvoltura, com audácia, deram aos Humanistas a estimulante certeza de que o conhecimento poderia também ser fruto da especulação, da criação humana, do pensamento organizado, bem conduzido, enfim da “ousadia de querer saber”, como diria Emmanuel Kant 400 anos mais tarde.

O que encantava e inspirava os Humanistas era constatar, pelo exemplo da Antiguidade Clássica, que poderia haver conhecimento independente da Igreja, conhecimento anterior, ignorante às escrituras, conhecimento além da teologia.

VII. Príncipes bibliófilos

Tal qual a revolução digital incorporou novos objetos em nossa vida cotidiana e novos espaços em nossas residências, a difusão do livro pela nascente cultura humanista solicitou soluções  outrora inexistentes dentro dos castelos para acomodar o novo hábito. O studiolo, palavra italiana, veio para suprir esta necessidade. É uma pequena peça, usando muita madeira nas paredes e mobiliário, provavelmente para torná-la mais aconchegante, sobretudo no inverno, e guarnecida com os móveis típicos de escritório. Era um local de recolhimento, destinado à leitura e meditação.

Não era algo totalmente novo pois há muito já existiam as células dos monges nos mosteiros, espaço de leitura, estudos e orações. Mas enquanto que as células funcionavam também como dormitórios, o studiolo guardou o aspecto de recolhimento solitário, mas era destinado exclusivamente à atividade intelectual.

Chartreux copiste, dans un manuscrit de la Vita Christi de Ludolphe de Saxe, XVe siècle

Essa redescoberta do livro laico, hoje podemos retrospectivamente associar ao desejo de mudanças profundas na sociedade. Mas, no plano individual, daqueles que criavam e decoravam seus studiolos e mais tarde bibliotecas, apoiava-se sem dúvida nas possibilidades esquecidas, ou até então inteiramente desconhecidas, que um bom livro pode oferecer pelo simples prazer de sua leitura. Em seu “Vida Solitária”, Petrarca escreveu:

“Procuro também livros de vários gêneros que, através dos seus autores ou dos seus temas, sejam companheiros agradáveis ​​e fiéis: prontos para, ao seu comando, sairem ou voltarem às suas estantes, sempre dispostos a permanecer em silêncio ou, falar, ficar em casa, acompanhar na floresta, viajar para longe, morar no campo, conversar, brincar, exortar, consolar, avisar, convencer, aconselhar, ensinar os segredos das coisas, as ações memoráveis, a regra de vida e o desprezo pela morte, a moderação na prosperidade, a coragem na adversidade, a constância e a firmeza na ação; companheiros cultos, alegres, úteis, falantes, cuja presença não suscita tédio, constrangimento, reclamação, murmuração, ciúme ou engano; entre essas vantagens, não exigem comida nem bebida e contentam-se com roupas pobres, um recanto da casa – sem contudo deixar de oferecer aos seus convidados inestimáveis ​​riquezas de alma, vastas residências, roupas deslumbrantes, banquetes cheios de prazer e os pratos mais doces”.

Mas sem desacreditar o poder de sedução que tem o livro, por todas as maravilhas que ele oferece, tão intensamente cantadas por Petrarca nas linhas acima, a voracidade com que a nobreza começou a disputar entre si a formação de bibliotecas com as iluminuras mais ricas e os manuscritos mais raros, talvez encontre um bom argumento também na visão e Erwin Panofsky em seu “Os primitivos flamengos”:

“A estravagância nos modos e costumes coincide frequentemente com os períodos em que a classe dominante de uma sociedade envelhecida começa a se sentir ameaçada pelo crescimento de forças mais jovens que lhe são opostas […] As velhas aristocracias feudais experimentaram a necessidade de se afirmarem nem tanto ao crescimento mas mais à intromissão de fato de uma nova classe proto-capitalista de mercadores e de financistas. O resultado é o que podemos chamar de uma espiral inflacionária de ostentação social”.

No final da Idade Média, uma das categorias onde burgueses e nobres de capa e espada passaram a medir forças foi a área da cultura, nas obras de arte que possuíam, na arquitetura e decoração dos seus palácios, na estatura dos artistas e intelectuais que os frequentavam, enfim, no seu refinamento espiritual tratado como patrimônio e símbolo de poder.

Chateau de Écuen, França – Hoje Museu da Renascença – sala da biblioteca e exemplares de livros da época.

As bibliotecas, na tal “espiral de ostentação”, contavam muitos pontos. As maiores bibliotecas, no final do século XV, contavam com algo como 600 ou até 1200 livros, entre religiosos e laicos, tratando dos mais diversos assuntos.

No final do século XV os livros passaram a ser cobiçados até como despojos de guerra. A pilhagem buscava os tesouros em ouro, pedras preciosas e relíquias de santos, mas também corriam para as bibliotecas em busca de livros.

Berruguete, Pedro
Prince Federico da Montefeltro and his Son
1480-81

É este cenário que tornou possível uma pintura inusitada como esta do espanhol Pedro Berruguete representando Federico Montefeltro e seu filho Guidobaldo. Montefeltro era duque de Urbino, um condottieri, um mercenário, temido por suas habilidades nas armas, mas também um intelectual humanista que montou a segunda maior biblioteca da Itália. A primeira era do Vaticano.

A cena tem algo de insólito. É um perfil, mas de corpo inteiro, portanto não está na tradição de um retrato heráldico focado apenas nas feições do retratado. Montefeltro está distraído em sua leitura, não tem a usual impassividade de um retrato principesco no qual o protagonista nos encara com seu ar distante e superior. Mas também está longe de ser algo como um instantâneo do dia a dia pois quem iria vestir uma armadura completa para ler um livro? A cena só faz sentido por reunir esses dois lados do personagem: intelectual e guerreiro ao mesmo tempo.

Albrecht Dürer – 1514 – São Jerônimo em seu studiolo

Com o Humanismo a atividade intelectual passou por uma valorização totalmente estranha à Idade Média. Qualquer inclinação à busca de conhecimento na esfera secular da sociedade era desencorajada, desvalorizada e até suspeita. A própria bíblia, era assunto primordialmente para o clero e os fiéis deveriam contentar-se com as interpretações oficiais que recebiam oralmente. Apenas uma parte relativamente ínfima da população tinha acesso a alguns manuscritos e a maioria deles eram livros de orações.

Portrait of Erasmus – 1526 copper engraving by the German artist Albrecht Dürer.

No início do século XVI tudo havia mudado. Somando-se à postura piedosa do religioso ou altiva do guerreiro, cunhou-se um novo tipo de ideal na atitude “sábia” do intelectual. Os artistas incumbiram-se de materializar em gestos, poses e olhares como seria a visão daquele que detém o conhecimento do mundo e que é capaz nos apontar novos caminhos de salvação. Um novo tipo de herói nasceu com o Humanismo.

Melancolia – Albrecht Dürer – 1514

Ironicamente podem ser observados também alguns sinais de um certo medo frente a essa nova aventura que se desenhava. Um ícone da ligação que pode ser feita entre a emancipação intelectual do humanismo e o medo de abandonar as bases sólidas da tradição, é a famosíssima gravura Melancolia, de Albrecht Dürer (acima). Uma figura feminina alada mostra-se em uma atitude de lassidão enquanto está rodeada de objetos ligados à alquimia, numerologia e geometria entre outros. Ela pode voar mas está pesadamente por terra. O ambiente até lembra o copioso estúdio de São Jerônimo, mais acima, do mesmo Dürer. Mas, enquanto São Jerônimo parece trabalhar compenetrado, com afinco, a musa da melancolia parece querer nos mostrar que conhecimento e autonomia não são necessariamente a chave da felicidade.

Nessa mesma direção, mas de forma ainda mais drástica, essa melancolia seria revivida pelo Romantismo do século XIX. Na manhã da Revolução Industrial, artistas negariam as conquistas do Renascimento e do glorioso século das luzes que lhe deu sequência, e voltariam saudosamente seus olhos para as certezas da Idade Média.

VIII. A paisagem

Albrecht Dürer – Pond in the Woods c. 1496

Se fosse preciso representar o Renascimento como um gesto, creio que a melhor maneira de expressá-lo seria o gesto de erguer a cabeça. Na Idade Média criaram-se coisas lindas, viveu-se intensamente o ideal de uma religiosidade da temperança, do amor e da generosidade. Mas na prática foi também extremamente violenta e avessa a mudanças. Foi uma época de hierarquia e submissão.

Por séculos as cabeças estiveram abaixadas em oração, desinteressadas do seu entorno, com fixação por um mundo espiritual e longe daqui. O mundo real seria apenas uma manifestação simbólica, hermética e inacessível aos comuns. O manual de vida da igreja católica era muito claro: resista ao pecado, conforme-se com seu destino e aguarde o juízo final.

Os humanistas do Renascimento, ousaram o gesto de erguer a cabeça e olharam à sua volta. O que foi que viram? Viram o mundo, as paisagens, as plantas, os animais e as estrelas. Tão obcecados por obedecer a Deus, perceberam que há muito tempo não olhavam para sua grandiosa obra que é o mundo em que vivemos.

Causou muito espanto e foi muito comentada uma aventura de Petrarca que subiu o monte Ventoux, de 1912 metros apenas para ver a paisagem, para sentir o ar diferente. É difícil para nós imaginarmos mas as pessoas “não viam”, não tinham esse conceito de admirar um vale, uma montanha ou um rio. Como gênero pictórico autônomo, a paisagem foi inventada no Renascimento.

Ao levantar a cabeça e olhar, tentar entender, admirar a natureza,  os humanistas viram aí um caminho,  a possibilidade de uma espécie de ascese fora da ortodoxia, fora da teologia tradicional. Não eram ateus. Acreditaram que a vontade do criador estaria certamente impregnada em cada canto, em cada detalhe da sua criação, então viram no estudo da Natureza o caminho para uma compreensão e uma comunhão com o divino. Estudar e compreender a Natureza tornou-se um ato de devoção. Ela seria a fonte primeva das verdades. Uma fonte onde qualquer um poderia beber.

Sobre essa mudança, há uma passagem nas anotações de Leonardo da Vinci que é muito esclarecedora: “Tenho plena consciência de que o facto de eu não ser um homem de letras, pode fazer com que certas pessoas arrogantes pensem que podem, com razão, censura-me, alegando que sou um homem ignorante no aprendizado de livros. Povo tolo! Não sabem eles que eu poderia replicar dizendo, como fez Mário aos patrícios romanos: ‘Aqueles que andam adornados no trabalho dos outros não me permitirão o meu próprio’? Dirão que, devido à minha falta de conhecimento dos livros, não consigo expressar adequadamente o que desejo tratar. Não sabem eles que os meus sujeitos necessitam, para a sua exposição, da experiência em vez das palavras dos outros? E como a experiência tem sido a mestra de quem escreveu bem, tomo-a como minha mestra e a ela sempre recorro.”

Leonardo era filho bastardo. Seu pai, como o pai de Petrarca, era notário e tinha por isso uma posição social confortável. Mas a mãe era alguém de origem muito humilde. Por esse motivo ele jamais poderia frequentar uma universidade e ser um “homem de letras”. Por sorte o avô (ou um tio paterno) lhe proporcionou uma instrução básica, privada, para aprender a ler, escrever e matemática. Para alguém como ele, foi o bastante.

Transparece em sua escrita seu rancor pelo preconceito, pelas barreiras que alguém na sua condição encontraria para que valorizassem o seu talento. Então ele escolhe a observação da natureza como fonte de conhecimento. Tanto para sua pintura como para seus tantos estudos beirando o científico. Elege a experiência como método. Escolhe um caminho aberto, independente, mesmo a quem não pertencia à elite da época.

Mais sintomático ainda, é que ele vai buscar o exemplo, a comparação, na Antiguidade Clássica, em Gaius Marius. Está aí o resultado do trabalho dos “caçadores de manuscritos” que deram acesso ao mundo pagão, pré-cristão. Gaius Marius (157-86 AC) foi um general e estadista romano que como Leonardo não tinha o amparo de uma ascendência nobre e suas habilidades militares despertavam a admiração mas também a oposição em meio ao patriciado romano.

Levantar a cabeça, olhar para o mundo terrestre e tomar a natureza como a grande mestra, foi a atitude que levou a arte renascentista ao naturalismo. Chegaram assim à fórmula de Alberti: o quadro como janela, o espaço autônomo e infinito é o reino da Natureza. O ato de observá-la tornou possível a perspectiva linear como método de representação que criou enfim o espaço como o entendemos hoje.

Em ato contínuo, esse mesmo olhar nos levaria à revolução científica e à Idade Moderna. O interesse pela natureza e sobretudo a ideia de que ela poderia ser investigada, a curiosidade por seus mecanismos e riqueza de suas infindáveis formas de vida e fenômenos voltou a ser objeto de intensa pesquisa.

As publicações inventariando as maravilhas da natureza inundaram as bibliotecas. Os livros de horas, saltérios, bíblias e outras publicações religiosas tinham na preciosidade e exclusividade, no trabalho intenso, quase insano, de sua produção um aspecto de oferenda e de objeto de devoção. Em contraponto, a invenção da imprensa por Gutenberg deu primazia ao conteúdo e à circulação de novas ideias.

Proporções humanas – Albrecht Dürer

História das Plantas

Sobre a vida aquática

As imagens acima são de livros expostos no Chateau de Écuen na França, onde funciona o Museu da Renascença. São exemplos da extensão dos temas que passaram a interessar a intelectualidade da época. Muito desse tipo de pesquisa inventariante e classificatória já havia sido feita na Antiguidade Clássica e mais recentemente pelos Árabes. Mas na Europa cristã isso era absolutamente novo.

Sobre as religiões em geral e em particular

Algo que vale a pena destacar e que é de uma ousadia sem precedentes é que até as religiões tornaram-se objeto de estudo. Religiões são antes de mais nada, na sua natureza mais profunda, a manifestação de um poder ou poderes sobre-humanos. O estudo comparativo que este livro parece encaminhar é a própria negação da religiosidade. Ele desloca as religiões para o campo da cultura, das “crenças”, do folclore e portanto das criações humanas.

Percorrer as notas de Leonardo da Vinci é outro modo para formarmos uma ideia mais clara de até onde ia essa descoberta da natureza. Encontramos temas como: por que a voz se afina nos idosos, o que são nossas veias, sobre o som que fica no sino depois que ele foi percutido, o que é a lua, porque o sol parece maior no oeste, como a luz penetra nos líquidos, a origem dos rios, o movimento dos pássaros sob diferentes condições do vento, o que faz as ondas na água ou por que cume das montanhas aparece mais escuro que suas bases.

Foi portanto no espaço de algumas décadas que o mundo deixou de ser apenas a sala de espera da vida eterna, em graça ou danação, e foi redescoberto como se fosse algo novo, novo e fascinante.

IX. Naturalismo

A busca de uma empatia com os fieis, através de uma maior dramatização na iconografia cristã, somada ao entusiasmo dos humanistas com mundo real, convergiam para a valorização de uma arte naturalista, visualmente convincente.

Naturalismo aqui não significava ainda a representação de cenas do cotidiano como se fossem instantâneos fotográficos. Isso ainda viria, porém mais tarde. Naturalismo significava que um rosto, um torso, um objeto qualquer deveria ser rendido com as proporções corretas, vistos de um certo ângulo, com sombras e volumes coerentes.

Com esse objetivo em mente estudaram muito a arte greco-romana pois entendiam que ela havia chegado a uma maestria muito grande nessas questões, em especial sobre a figura humana. É difícil imaginar o estupor que deve ter causado em 1506 a escavação que trouxe à luz o grupo Laocoonte. Este grupo é relativo a uma lenda da Guerra de Tróia e mostra Laocoonte e seus dois filhos sendo estrangulados por uma serpente. Os corpos vigorosos tão bem modelados, a composição complexa, a vivacidade do drama e a dificuldade de execução era tudo que os artistas do 1500 queriam poder também realizar. Deve ter sido muito estranho confirmar mais uma vez que alguém já havia chegado a esse nível de perfeição em tempos tão remotos.

Laocoon – Séc. I ou II BCE

Mas como já vimos logo acima, os objetivos da arte medieval eram outros. É interessante compararmos, por meio de um tema comum, como que as escolhas dos artistas foram se transformando até a reaproximação com a Antiguidade Clássica.

Mosaic in Sant’Apollinare Nuovo, Ravenna, early VI century.

Este mosaico representa a Santa Ceia. É do século VI, bem no decolar do cristianismo e fica na basílica Sant’Apollinare Nuovo, em Ravena na Itália. O artista escolheu uma mesa em semi círculo. Colocou Cristo à esquerda dando sua benção e ele aparece como que reclinado sobre um banco. Seu corpo é espelhado pelo último apóstolo no lado direito para dar simetria e equilíbrio à composição. Por uma questão de compreensão os peixes sobre uma travessa são vistos por cima, enquanto que, incoerentemente, os personagens são vistos de frente. Com excessão de dois dos apóstolos que tem cabeleiras brancas, ou outros são como que serializados na mesma fórmula para representar seus rostos e cabeleiras.

É uma imagem que visa o reconhecimento da cena através de uma representação esquemática e apenas dos elementos chave, mas cuida ainda de um efeito estético sóbrio e agradável.

The Last Supper – Ugolino da Siena (Ugolino di Nerio) Italian ca. 1325–30

Oitocentos anos mais tarde, na Santa Ceia de Ugolino di Nerio, um seguidor de Duccio di Buoninsegna e que portanto já se preocupava com uma representação mais visual, temos uma noção de perspectiva que é evidente se observarmos o teto da sala. Mas a mesa ainda parece um pouco inclinada demais para poder mostrar o que está sobre ela. Os pratos, provavelmente redondos, mantém essa forma ainda que vistos em ângulo. Digamos então que é uma perspectiva que ainda era sacrificada em favor do entendimento.

O momento escolhido, em vez de ser uma benção, é mais dramático. Trata-se do momento em que Jesus diz que um de seus escolhidos irá sair dali para traí-lo. Ugolino dá a dica de quem se trata pois é o único apóstolo sem a auréola de santo. Nenhuma tentativa de indicar por sua expressão ou postura que seria ele o Judas. Ele é representado na mesma atitude neutra, como qualquer um dos outros.

Apesar do arranjo mais natural, contornando a mesa, o posicionamento das auréolas fica um pouco estranho no caso dos santos à direita do Cristo pois a mesma parece um obstáculo à conversação com os convivas do outro lado da mesa. Mas na verdade a sua presença é apenas simbólica e não física. Funcionam apenas como marcadores da santidade e são por esse motivo feitas com folhas de ouro.

Os rostos dos apóstolos são muito mais individualizados que no exemplo precedente, com cabelos, barbas e feições que seguem um esquema mais solto e permitem alguma diferenciação. Mas suas poses, no geral, ainda mostram uma serialização e pouca coisa de seus corpos se percebe por baixo de suas vestes.

Leonardo da VInci – 1495–1498 – Santa Maria delle Grazie, Milan, Italy

 

Vejamos agora a Santa Ceia de Leonardo da Vinci.  Ele optou por colocar todos do mesmo lado de uma longa mesa oferecendo assim uma visão panorâmica ao observador e criando mais espaço para trabalhar as atitudes. Tirou Cristo da cabeceira e o posicionou ao centro. Introduziu uma paisagem vista através de aberturas no fundo da sala. O momento escolhido foi novamente aquele em que Cristo anuncia que será traído. A mesa é mostrada indicando também alguns objetos sobre ela. Vamos agora aos pontos que fazem desta Santa Ceia uma pintura renascentista.

Para começar com o óbvio, temos uma perspectiva linear perfeita. Não bastasse ser perfeita ela foi posta a serviço de enfatizar o Cristo pelas tantas linhas paralelas que convergem para ele. Deu a cada apóstolo uma personalidade com traços, gestos e vestes diferenciados, mas organizados com uma espécie de musicalidade visual que faz com que nosso olhar vá passando sem tropeços de um gesto a outro. A tensão associada à revelação da traição permitiu ao artista explorar as diferentes reações e interações entre os personagens.

A ausência das auréolas já não era novidade nesse tempo, nem a adição de uma paisagem vista por aberturas no fundo da sala. Mas são elementos que ajudam a ancorar a pintura como algo acontecendo aqui, em algum lugar, como um evento terrestre.

Nada ali foi feito sem estudos preliminares e cada pose foi decidida entre muitas variações possíveis. Esse ritmo nos gestos e o didatismo da composição, mas ainda garantindo uma grande naturalidade na cena de um modo geral, era fruto de muita experimentação e análise. Os artistas do medievo sabiam muito bem ser didáticos para contar suas histórias, mas para isso sacrificavam a naturalidade produzindo imagens que começaram a parecer toscas e pouco convincentes para quem queria mais emotividade. Na virada para o Renascimento tanto clareza como naturalidade passaram a ser exigências para uma obra de arte bem sucedida.

Leonardo da Vinci – estudos para a Santa Ceia.

Um ponto interessante sobre os estudos preparatórios é que eles passaram a ser guardados, comercializados e colecionados. Isto reflete um novo modo de se olhar para eles como algo mais próximo do ato criador. Os estudos  podem ser metaforicamente, por seu acabamento um pouco errático e inacabado, mais facilmente ligados a uma “ideia” em pleno ato de concepção. A obra estava na mente do artista e os estudos seriam suas primeiras manifestações no mundo real. Este ponto de vista corroborava algo que era muito importante para artistas como Leonardo da Vinci. Ele queria que todos olhassem para as artes plásticas como atividade intelectual, mental, e por isso merecedora da mesma deferência com que se tratavam as ditas artes liberais que são compostas do Trivium (lógica, gramática, retórica) e do Quadrivium (aritmética, música, geometria, astronomia).

X. O Retrato

Em seu livro “Éloge de l’individu”, Tzvetan Todorov diz que o Renascimento foi mais a descoberta do indivíduo que a descoberta da Antiguidade. Foi uma emancipação do particular em relação à categoria à qual ele pertence. Emancipação da pessoa em relação ao seu clã ou sua classe. Foi a valorização do instante vivido, da passagem do tempo presente, sobre a vida eterna. Foi a reivindicação do indivíduo sobre seu destino.

Nesse contexto o retrato foi promovido a um dos mais importantes gêneros da pintura. Se antes um brasão dizia tudo que precisava ser dito sobre um personagem em um manuscrito iluminado e a representação do indivíduo em si podia bem ser apenas a indicação do mesmo por uma fórmula qualquer, como vimos no Codex Manese mais acima, agora a busca vai para as feições do retratado na plenitude do seu realismo.

Podemos imaginar metaforicamente que a entrada de nobres e burgueses na pintura do final da Idade Média, rumo ao Renascimento se fez pelas laterais do espaço pictórico.

Hans Memling – The Moreel Triptych (or the Saint Christopher Altarpiece)- 1484 Hans Memling

Os patronos dos trípticos para os altares nas igrejas, aqueles que comissionavam os artistas para a execução da obra, não ousavam dividir o espaço com as figuras sagradas no painel central. Eram acomodados nas laterais, mas suas feições eram fielmente retratadas. Primeiro porque a pintura tendia a ser mais realista e segundo porque na “escalada da ostentação” mencionada por Panofsky, ser reconhecido visualmente funcionava como uma espécie de publicidade do doador.

Hugo Van der Goes – The Portinari Triptych – 1483

Paineis laterais com membros da família Portinari, patronos da obra, presentes mas representados em escala menor.

Um outro recurso para introduzir algum comedimento e evitar qualquer acusação de soberba, é quando apareciam fora de proporção, em tamanho reduzido em relação às demais figuras da iconografia para ressaltar a sua humilde condição de pecadores diante do sagrado.

É o caso do Tríptico Portinari, acima, comissionado por Tommaso Portinari, florentino, operador do banco Medici em Bruges na Holanda. Ele se fez representar no painel esquerdo com seus dois filhos e sua esposa Maria di Francesco Baroncelli, aparece no painel direito com sua filha. Todos em tamanho reduzido.

Robert Campin and workshop, Mérode Altarpiece. 1425/28

Com o tempo, aumenta a frequência com que os doadores crescem e começam a ficar mais em linha com as demais personagens da pintura. Começam também aparecer casos em que eles figuram no mesmo espaço da personagem principal, mas não sem licença, são introduzidos por algum santo que os apresenta, que os recomenda.

Jan van Eyck – The Virgin and Child with Canon van der Paele, 1434–1436.

Este é o caso da Virgem com Menino Jesus (acima). Ajoelhado ao seu lado está Joris van der Paele. Este é apresentado à virgem por São Jorge, em armadura. O gesto de sua mão esquerda não deixa dúvidas de que se trata de uma apresentação. Joris era alto funcionário na hierarquia eclesiástica. Era encarregado da chancelaria do Papa em Bruges.

Eyck Jan Van – The Virgin of Chancellor Rolin – 1435

Na Virgem do Chanceler Rolin (acima), de Jan Van Eyck, de 1435, Temos Nicolas Rolin, de família burguesa, O papel de chanceler conferia-lhe importantes atribuições políticas e econômicas no ducado da Borgonha. Corpulento, com um ar grave, em vestes de luxo, aparece sozinho dividindo espaço com a virgem e sendo abençoado pelo menino Jesus. A virgem está sem auréola. Em vez disso recebe uma coroa de um anjo e compartilha assim com os humanos o uso do mesmo símbolo de poder.

Ao fundo, um jardim com pássaros exóticos, duas figuras no parapeito da empena da construção e uma paisagem exuberante que mostra que a vida segue seu curso para os demais dos mortais. A paisagem coloca a cena imaginária da benção ao chanceler como um acontecimento real, bem aqui na Terra, a uma certa hora do dia em algum lugar no ducado da Borgonha.

Poucas décadas atrás uma pintura assim pareceria um disparate total, de uma inconveniência sem limites, um verdadeiro sacrilégio, mas era o espírito renascentista que já mostrava a que veio.

Nestes retratos de doadores em cenas religiosas, suas feições eram bem cuidadas, como foi dito acima. Mas a situação pedia uma postura, um protocolo em linha com a solenidade da ocasião representada. Já nos retratos isolados, que multiplicaram-se exponencialmente a partir do fim do séc. XIV, em vez das poses duras e sem expressão, o artista tinha a liberdade de procurar dar vida, dizer quem era o retratado não apenas através de suas vestes e acessórios, mas sobretudo procurando materializar em imagens a personalidade, os sentimentos e emoções do retratado através de seus traços e expressividade.

É comum que com o tempo percamos a capacidade da empatia com certas obras. Assim como há casos de outras que não foram tão louvadas quando de sua criação, mas são redescobertas em tempos futuros. São ainda incontáveis os retratos que atravessaram os séculos e ainda somos capazes de “conversar” com os retratados. Por vezes vem um inexplicável sentimento de proximidade e empatia.

Isto significa que ainda vivemos com um modo de ver e interpretar essas imagens sem interrupção de continuidade com o Renascimento. Mesmo com a invenção da fotografia, para citar algo que poderia parecer uma nova base, uma ruptura em nossa produção/leitura de imagens, a julgar por nossa familiaridade com imagens produzidas na Europa a partir do final do século XV, podemos dizer que o Renascimento significou o início de um capítulo que ainda não terminou.

Seria por conta do seu realismo e objetividade? Pelo não relativismo do real? Este seria um argumento típico do pensamento renascentista. Seria como dizer que chegamos à perfeição. Arriscado demais ir por esta via. A história já deu provas de que somos flexíveis o bastante para negar ao real a sua objetividade e fazer dele a misteriosa manifestação de algo incompreensível. A Idade Média foi exatamente isso.

Robert Campin Portrait of a man – 1430

Uma outra armadilha é imaginar que sendo cópia do real o retrato naturalista será determinado pelo modelo apenas. Isto seria esperar que se dois pintores retratam o mesmo modelo os retratos sairiam iguais, já que o modelo é um só. Obviamente não é este o caso. Embora os dois retratos possam ser considerados muito fieis, eles seguirão estratégias diferentes e por isso apresentarão resultados muito diversos.

Podemos pensar até em um regionalismo nesse tratamento. Dito muito a grosso modo, os artistas do norte da Europa, onde hoje á a Bélgica, Holanda, Alemanha e norte da França, tinham tendência a uma abordagem mais analítica. Olhavam seus assuntos como uma soma de pequenas partes. Já os italianos, os campeões do Renascimento, tinham uma visão mais sintética e olhavam mais para o todo, para as linhas e volumes gerais de suas composições.

O retrato acima, de um homem desconhecido, ilustra a abordagem que estou chamando de analítica. É do artista flamengo Robert Campin ou Mestre de Flemalle.  É interessante se pensar como uma pintura assim ainda guarda uma relação forte com a descrição verbal da coisa retratada. Tudo que tem nome, que tem uma palavra associada, é distintivamente representado na pintura. Parece que Campin tratou de cada fio de cabelo, cada poro, cada pelo de barba que mostrava sua ponta na pele do sujeito. Cada ruga e os minúsculos reflexos na pupila, tudo tem uma individualidade e tudo é destacado do todo.

O resultado final é a soma dessas minúcias. Robert Campin foi um iniciador do Renascimento na Flandres, atuou 30 anos na cidade de Tournay, hoje Bélgica. Rogier van der Weiden e Jackques Darret saíram de seu Atelier e seguem a mesma abordagem no detalhamento minucioso em suas pinturas.

Jan van Eyck foi seu contemporâneo. Foi outro artista que detalhava suas pinturas até o limite do que se pode fazer a olho nú. Abaixo, um de seus retratos mais aclamados, “homem com turbante vermelho”. Supostamente um auto-retrato.

A dedicação de van Eyck aos detalhes é também celebrada no seu retrato de Giovanne Arnolfini e sua esposa. Giovanni era um mercador italiano que passou boa parte de sua vida na Flandres onde se fez retratar por van Eyck.

Jan van Eyck – Arnolfini e sua esposa – 1434

Neste link é possível se ver em alta resolução, através de um zoom a riqueza de detalhes do retrato dos Arnolfini.

Talvez seja a nossa percepção, que é muito mais aguda para as feições humanas, mas me parece que essa fissura por detalhar tudo ao máximo funciona melhor com naturezas mortas do que nos rostos. Quando no século XVII as naturezas mortas com flores ou frutas e alimentos em geral dispostos em porcelanas, cristais e pratarias, viraram moda, os pintores do norte da Europa eram imbatíveis na sua maestria em render as texturas, brilhos e transparências. Eles já tinham nessa época uma longa tradição em perseguir a materialidade das coisas.

Enquanto isso na Itália, nessa abordagem que estou chamando de mais sintética, a preocupação ia mais na direção das linhas e volumes, dando primazia ao todo e menos aos detalhes. Talvez tenha pesado nisso a mais lenta adoção da pintura a óleo, se comparada ao norte europeu, e também uma tradição escultórica mais forte.

Sandro Botticelli – Portrait of a Young Woman 1480-85

Nesse retrato de uma jovem, Botticelli dá atenção a cada conta de seus adornos na gola e na cabeça, mas o tratamento do cabelo, assim como do rosto deixa muito clara sua preocupação com o desenho, mais do que com a materialidade, e assume um caráter mais gráfico. Talvez esta opção tenha um viés no uso da têmpera sobre madeira. Técnica que dificulta o uso da sobreposição de camadas do pigmento dando-lhe transparência.

Antonello da Messina – Portrait of a Man (Il Condottiere) 1475

Acima está Antonello da Messina já com uma pintura à óleo. É muito difícil dizer mas apesar de sua grande atenção aos detalhes sua maneira de render um rosto tem algo de diferente do que se faziam os pintores flamengos. Uma possível explicação seria que ele dá mais atenção, neste retrato, ao modelado do rosto como um todo do que a textura ou micro acidentes locais na pele de seu modelo.

Mas talvez essa sensação tão vívida, que nos incita a olhar mais para o todo, olhar para o retrato como olhamos uma pessoa real à nossa frente, venha de sua habilidade em dar uma expressividade muito forte que tira nossa atenção da matéria pictural e nos direciona a olhar o ser humano, olhar nos olhos.

Isso é muito patente nessa sua Anunciação (abaixo). Embora seja uma pintura da Virgem Maria, acredita-se que ele tenha usado uma modelo. O recurso de usar modelos para pinturas religiosas era muito comum nessa época.

Faz parte da iconografia da anunciação que a Virgem esteja lendo quando o arcanjo Gabriel vem lhe anunciar que ela espera o filho de Deus, Jesus. Mas faz parte também que ambos sejam mostrados e de corpo inteiro. Messina inovou e apenas sugere uma presença à direita da Virgem. Sugere por sua mão direita que parece indicar ao arcanjo que ela notou sua presença mas está tão fixamente presa aos seus pensamentos que não vira seu rosto em sua direção.

Antonello da Messina c.1475 – Virgin Annunciate

Essas interpretações ou leituras da imagem são obviamente subjetivas. Para mim, sabendo que é uma Anunciação, o olhar da Virgem fecha totalmente com a narrativa. Ela sente todo o peso de saber o que vai acontecer, de antever o grande sofrimento que a espera, mas resigna-se pois sabe que é assim que tem que ser. É o olhar de quem tem a força interior de aceitar seu destino mesmo sabendo que será sua tragédia. A meticulosidade da pintura Italiana vai em outras direções se comparada com seus pares no norte da Europa, está mais nessa teatralidade, nessa emotividade, do que na exatidão realista dos detalhes.

Até aqui vimos mais a produção do século XV. É comum que seja um período referido até como pré-Renascimento, embora todos os seus elementos de base já estejam presentes. Mas a questão é que logo na virada do 1500 nomes como Rafael, Leonardo da Vinci e Michelangelo foram tão longe, voaram tão alto, que a história os consagrou como os grande representantes do Renascimento nas artes.

Raphael Sanzio (1483 – 1520) deve ter sido alguém extremamente simpático e afável. O pintor e historiador Giorgio Vasari (1511 – 1574) refere-se a ele com adjetivos como bondoso, gracioso, modesto, gentil e pondera ainda como foi uma benção da natureza colocar tudo isso em um artista extremamente talentoso. Toda essa paz de caráter transparece no trabalho de Raphael. Suas composições são claras, equilibradas e seu desenho é seguro e harmonioso.

Como retratista Raphael foi um artista extremamente interessado na natureza humana. Ele morreu cedo, com 37 anos apenas, mas conheceu enorme sucesso e foi comissionado para trabalhos grandiosos em especial no Vaticano. Talvez até por isso não deixou muitos retratos.

Raphael Sanzio – retrato de um jovem – 1499

Acima, um desenho que realizou com 16 anos de idade no final de seu aprendizado no atelier de Perugino. A imagem é extremamente vívida apesar das limitações inerentes ao desenho que não usa cor e se constrói com linhas que, a rigor, não existem na natureza. É um retrato que nos leva a refletir que o realismo na arte não vem da imagem conter “tudo” que contém o objeto, mas antes de saber dar as pistas certas para que o observador complete a imagem em sua mente. É essa imagem mental que induz  sensação de que a obra é extremamente fiel.

Raphael Sanzio -Portrait of Bindo Altoviti 1512-15

Bindo Altoviti, era banqueiro e amante das artes. Na ocasião do retrato tinha apenas 24 anos e Rafael representa-o em uma posição pouco usual, com o torso quase de costas, ele volta seu rosto para nós fitando-nos profundamente. Há muita sensualidade na imagem como um todo, pelo modelado do rosto muito jovem, posição da mão que parece conter seu manto para que não caia, cabelos sobre a pele que nos faz imaginar a maciez de seu contato.

Raphael Sanzio – Self-Portrait with a Friend” (1518-1520)

Mais experimentações de Raphael. Este duplo retrato com um amigo, acredita-se que seja seu pupilo Giulio Romano, tem um curioso ar de um instantâneo. O gesto do amigo, como que indagando Raphael, e este que nos olha fixamente, dão um ar de uma imagem capturada como uma fotografia.

Raphael Sanzio – Portrait of Pope Julius II, c. 1512

Mais um retrato surpreendente de Raphael. O papa Julius II é conhecido como o “papa guerreiro” por conta de sua agressividade em comandar tropas em batalhas para consolidar o poder temporal sobre estados pontificais. Seu nome papal, Julius, ele o escolheu por sua admiração por Julius Caesar, o general romano. No entanto, Raphael escolheu representá-lo com um ar tristonho, introspectivo e que parece cansado. Muito longe de um retrato heróico como de um general e igualmente longe de um retrato piedoso, que ficaria bem para um líder religioso, parece que Raphael resolveu representar o homem por trás do personagem.

Leonardo da Vinci – Monalisa – 1503/6

Para encerrar com a que é certamente a mais famosa experimentação em retratos na pintura renascentista, temos a Monalisa ou a Gioconda de Leonardo da Vinci. Existem muitos retratos maravilhosos e mais ou menos contemporâneos da Gioconda. Não há uma base sólida para se argumentar que este seja muito superior a vários outros. Muito de sua fama de hoje vem do fato de que foi roubado em 1911 e recuperado em 1914. Esse episódio lhe deu muita publicidade na época. De lá para cá escreveram-se volumes e volumes de teses e análises indo das mais sérias até as teorias mais estapafúrdias. Inúmeros estudos foram feitos com aparelhos científicos e o que se apurou é que a pintura já foi significativamente alterada ao longo dos seus mais de 5 séculos.

Mas também é fato que ela causou muita admiração em todos que a viram já em sua época. O que é certo é que havia uma opinião corrente de que a pintura deveria se fiel à realidade. Podemos dizer que de norte a sul este era o entendimento do papel da arte. As primeiras tentativas neste sentido buscaram como que observar muito atentamente o modelo, como se fosse com uma lupa, para reproduzir todos os seus detalhes e todas as suas minúcias. Isso é especialmente verdade nos pintores flamengos sendo Jan van Eyck talvez o melhor representante dessa abordagem.

Mas ao nos aproximarmos do 1500 já encontramos, com frequência cada vez maior, uma outra abordagem que seria observar o retratado do ponto de vista do observador, à uma certa distância, e assim passar por cima desse mundo quase microscópico e representar uma presença humana captada ao vivo.

A Gioconda é, entre outras virtudes, um caso extremamente feliz de aplicação deste princípio. Deve ter causado muita estupefação, deve ter suscitado muitos questionamentos o fato de que Leonardo logrou uma impressão muito vívida, uma presença muito real, sem lançar mão de detalhes que resolveu relegar ao plano dos supérfluos.

Sua pintura não é nem esquemática, ornamental, caligráfica como se fazia na Idade Média e nem uma tentativa de destacar cada fio de cabelo como se fazia no final do século XV na Flandres. Para usar um paralelo com a fotografia, seria algo como usar um filtro de foco suave. A isto Leonardo chamava de sfumatto.

O fundamento para que tal técnica funcione é o fato de que em nossa leitura de imagens não processamos de fato cada detalhe do que nossos olhos podem captar. A visão é um jogo de aproximação entre o que nossos olhos vêem e aquilo que sabemos de experiências prévias. O sfumatto joga com essa nossa capacidade e tendência em completar aquilo que falta na imagem. Uma imagem incompleta deixada para nossa interpretação pode funcionar melhor, em termos de realismo, do que uma imagem cheia de detalhes que contrariam o que seria uma impressão visual genuína.

XI. O bom e o belo

Raphael – Triumph of Galatea – 1512

Onde procurar a beleza? Essa foi a grande questão que no final do século XV motivou o surgimento das primeiras teorias da arte. Até então, não houvera uma discussão filosófica tentando compreender a arte de um ponto de vista de sua natureza, objetivos e métodos. Era tacitamente aceito que uma obra de arte deveria se bela. Não havia ainda uma arte feita para chocar o público, como seria o caso mais tarde. Essa condição de portar beleza, em conjunto com a nova premissa de que as imagens deveriam tomar a natureza como modelo, levou à indagação de onde viria então esta procurada beleza. Seria da realidade tangível? Teria o artista que ir em busca de modelos perfeitos para copiar? Ou viria de dentro do próprio artista cujas mãos seriam guiadas por uma noção profunda do que seria um corpo ou um rosto belo? Se vinha de dentro do artista, como que ele adquiriu esse conhecimento? Observação? Revelação divina?

Para Leon Batista Alberti, que escreveu o muitíssimo influente e já citado tratado De Pictura, a beleza viria da observância de um princípio de harmonia entre as partes e destas com o todo. Esta é uma noção um tanto vaga e tem ascendência no pensamento da Grécia antiga. É daquelas definições que precisam de exemplos e os exemplos criam uma noção, dão sentido à definição, como que por osmose. O maior exemplo para o Renascimento vinha da Antiguidade Clássica.

Mas o importante aqui é notar que, seja como for, era uma noção da beleza como um fenômeno. Ela “acontece”, pode ser encontrada na natureza, nas obras de arte antigas e pode ser produzida pela mão do artista contemporâneo, em qualquer caso, desde que respeitada essa condição de harmonia, lá estará a beleza.

Ainda com Alberti, com este entendimento fenomenológico da beleza, veio a ideia de que sendo muito difícil se encontrar uma beleza perfeita, uma Vênus ou um Apolo em carne e osso, caberia ao artista começar com a natureza tangível, que estava bem ao seu dispor, e usar seu talento para superá-la em arte, alterando o que sentisse que deveria ser alterado. O artista é aquele que observa o mundo real e o refaz em arte corrigindo-o e melhorando-o. Essa era como que uma fórmula naturalista e ao mesmo tempo idealista da arte.

Acontece que havia também um outro ponto de vista totalmente diferente e derivado do também já citado filósofo Plotino (205 – 270). Plotino é conhecido por ter se inspirado fortemente na filosofia de Platão (427/8 – 347/8), porém de forma mais mística. Sua filosofia, batizada no século XIX como Neoplatonismo, foi extremamente influente na teologia cristã durante toda a Idade Média e teve uma sobrevida considerável no Renascimento.

Fazendo bom par com a dualidade corpo e alma, que está na base do cristianismo, Plotino considerava que para além do mundo tangível existe um outro que é abstrato e imaterial. O mundo material é ilusório, percebido apenas pelos sentidos, é um derivado do mundo paralelo que seria na verdade o que deveríamos chamar de real. Este mundo espiritual é o mundo perfeito, onde tudo é perfeito, tudo é bom e tudo é belo.

O neoplatonismo de Plotino foi aplicado pelo italiano Marsilio T. Ficino (1433 – 1499) em uma teoria da arte. Segundo Ficino um corpo bonito é aquele em que sua versão material corresponde melhor à sua forma ideal que habita o mundo das ideias perfeitas no mundo paralelo. A beleza terrestre “representa o triunfo de Deus sobre a matéria” (citado por Irwin Panofsky em Idea).

É daí que veio a ideia de que as pessoas bonitas são boas e que as pessoas boas certamente serão bonitas. É daí que veio a condenação da feiura nas suas muitas variantes como sendo algo mau não apenas por seu feio. Hoje parece que estamos tentando, por uma decisão moral muito louvável, eliminar essa dualidade feio/bonito, mas a influência do pensamento platônico ainda é forte.

Voltando a Ficino, 0 mais interessante vem quando ele diz que Deus imprimiu em nós todos, em nossa alma, o conhecimento do belo e ideal e é assim que reconhecemos quando alguma coisa, uma obra de arte, é bela. O artista é alguém capaz de buscar no seu íntimo estas formas perfeitas e trazê-las a nosso mundo na forma de obras de arte.

Temos então, com Alberti, uma visão mais pragmática. Ele desenvolveu o conceito de harmonia das formas em conselhos sobre disposição dos elementos no espaço pictórico, uso da cores, observação da natureza como referência máxima e também o uso da perspectiva linear como método. Do outro lado temos Marsilio Ficino com uma visão metafísica da beleza que ainda a ligava indissoluvelmente ao conceito de bom.

Essa era a discussão. Entre os artistas, no conjunto da obra e também nas suas reflexões, quando eles deixaram algum escrito ou quando suas opiniões foram registradas por amigos e biógrafos, encontramos com mais frequência um uso seletivo misturando uma visão e outra.

A observação da natureza foi fundamental para o desmembramento de sujeito e objeto em matéria de arte. Afastando-se da Idade Média, o artista reconhece a autonomia do mundo exterior como seu objeto e assume sua autonomia como sujeito criador de uma versão, por meio de técnicas que ele aprende e desenvolve. Ele repudia o conceito de simples cópia e adota a postura de “refazer melhor”, de superar a natureza fazendo-a mais bela ou bela de fato.

Da visão mística do neoplatonismo ele empresta a justificativa que o autoriza a ousadia de querer superar a criação, de fazer de si próprio um demiurgo, pois ele já trás dentro de si, como uma dádiva divina, o conhecimento além da experiência, conhecimento do mundo ideal.

A metafísica de Marsilio Ficino rende ainda o conceito de gênio, tão caro a artistas como Leonardo da Vinci. A ideia de que a beleza, dádiva de Deus, mora dentro de nós, mas só o artista tem a capacidade de ir no fundo de sua alma e trazê-la heroicamente à superfície, é sem dúvida muito sedutora para quem busca autoafirmação, quem busca desvencilhar-se da alcunha de mero artesão.

As figuras femininas de Raphael são a própria encarnação da beleza ideal como era entendida em sua época. É muito famosa uma de suas cartas em que ele comenta seu método. A carta era endereçada a seu amigo Baldassare Castiglione em replica aos elogios que este havia feito à sua Galatea (acima) no afresco que Raphael executou para um banqueiro do Papa. A carta, citada em “Ideal and Type in Italian Renaissance Painting”, ensaio de Enst Gombrich, diz o seguinte:

“Sobre a Galatea, eu deveria considerar-me um grande mestre se apenas metade dos muitos elogios que vossa senhoria me escreveu fossem merecidos. Contudo, eu reconheço nas suas palavras o amor que você me dedica, e diria que a fim de pintar uma bela mulher eu deveria ver muitas mulheres bonitas, mas na condição de que eu teria vossa senhoria ao meu lado fazendo as escolhas. Mas como há uma falta das duas coisas, de bons juízes e de belas mulheres, eu fiz uso de uma certa ideia que me vem à mente. Se ela carrega uma excelência em arte eu não sei, mas eu trabalho duro para tentar alcançá-la”.

É interessante esta passagem pois vemos que Raphael emprega as duas formas acima mencionadas sobre a busca da beleza, no caso, feminina. Uma seria procurando-a entre mulheres reais e então procedendo à sua diligente imitação em pintura. A outra, consiste em usar uma noção interna, “uma certa ideia que me vem à mente”. Raphael, apesar do seu imenso interesse no ser humano, evidente em seus retratos que buscam algo como uma psicologia do retratado em combinação com a fidelidade visual, era neo-platônico no sentido de que também buscava essa intuição da beleza e dela fez extenso uso nas suas muitas madonas ou figuras da mitologia. Recorria assim a esse ideal impresso em sua mente quando a tarefa era representar uma beleza ideal.

Na visão mística de Marsilio Ficino a beleza ideal, reminiscência de um mundo ideal fora de nosso alcance, seria um sentido que trazemos de nossa existência prévia, antes de encarnarmos neste mundo material. Ela não existe em nossa esfera terrestre mas temos a sua marca em nosso íntimo profundo, em uma espécie de memória adormecida. É de lá que o artista a trás para a superfície de sua pintura e quando a vemos somos capazes de reconhecê-la.

A interpretação menos mística é de que no processo de aprendizagem do artista ele convive com modelos e esquemas de como fazer um rosto partindo de um oval, como fazer uma orelha ou as mãos e quais são as proporções corretas entre essas partes. Estes modelos já testados e aprovados constituem um consenso geral das formas belas e funcionam depois como base para a criação de belas figuras. O sucesso depende do talento do artista em aplicar estas convenções e por vezes em atualizá-las. Para os retratos de pessoas reais o artista parte dos mesmos modelos mas implementa variações conforme o retratado.

XII. Conclusão

 

Leonardo da Vinci – St John – 1513/16

A ideia de que a arte deveria ser a imitação direta da realidade, base de uma abordagem naturalista da representação, esteve realmente muito em voga no Renascimento. Esteve e fracassou. Usando a metáfora de Albert Camus em seu “A queda”, quando tentamos apreender a realidade, quando nos aprofundamos em tentar capturá-la, ela se torna algo como “água a escorrer entre nossos dedos”.

No mundo da arte isso foi algo como boa e má notícia. Má pois esse era o objetivo imaginado. Boa pois libertou a arte de uma quase prisão na qual tentou se trancar. Quando comparamos os sfumatto de Leonardo da Vinci com a minúcia quase doentia de Jan van Eyck, fica evidente que os dois são realistas no sentido de que temos diante de nós objetos com uma impressão visual que nos permite reconstruir mentalmente uma cena muito vívida a partir daquilo que vemos. Mas há um abismo insuperável entre uma representação e uma imaginária visão direta daquilo que o artista decalcou em nós.

E ainda esperamos mais de 300 anos para tentar a fotografia proclamando animados:  Agora sim, agora temos o “pencil of nature”. Para em seguida constatarmos o mesmo engano. Nem o processo mecânico está livre da subjetividade de quem o utiliza.

Uma consequência importante das explorações renascentistas para o futuro da arte foi preparar o terreno para a busca de sua autonomia. Ficou patente que mesmo uma imagem visualmente convincente ainda deixa uma flexibilidade enorme para que elementos puramente formais contribuam para o seu sentido. Tudo o que se seguiu foram experimentos guardando o aspecto figurativo mas  abusando em várias direções na construção formal das obras. Até o ponto em que a figuração foi abandonada e apenas o aspecto formal foi testado como protagonista. Foi a aventura da arte abstrata.

É curioso lembrar que Leonardo da Vinci aconselhava em seu tratado que olhássemos para uma parede com pintura velha, descascando, embolorada, e tentássemos a partir dessas manchas aleatórias construir a imagem de algo real, um rosto, um torso. Ele sugeria assim o caminho inverso, do abstrato ao concreto. O mundo dá muitas voltas.

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