A Bessamatic foi lançada em 1959 por uma das mais tradicionais firmas alemãs do campo da fotografia, a Voigtlander, a mesma que fabricou a primeira lente realmente fotográfica em 1840, a lente de Petzval. Infelizmente, a Bessamatic seria um dos últimos lançamentos dessa pioneira da fotografia. Mesmo antes de lançar a Bessamatic, desde 1956, a Voigtlander já pertencia ao grupo Zeiss Ikon. No início dos anos 1970 encerrou de vez toda produção.
Analisando a Bessamatic já encontramos algumas pistas para entender os motivos desse fim. Do ponto de vista de qualidade ela é primorosa, digna representante da excelência da indústria fotográfica alemã, mas o conceito está preso a algumas premissas do passado que impediriam a continuidade de uma linha de câmeras do tipo da Bessamatic. É pena pois o momento era ideal para uma monoreflex, a categoria estava prestes a dar um salto enorme, tanto no mercado profissional como amador, mas o fato é que ela não correspondia às expectativas que viriam a ser a prática no mercado.
O obturador do tipo central, um Synchro Compur, é uma jóia de engenharia, mas é caro, complexo e impõe limitações de geometria para as lentes, já que os dois dividem o mesmo espaço reduzido de uma 35mm monoreflex. Os obturadores de cortina, ou de plano focal, convenientemente separam a óptica do mecanismo de controle do tempo de exposição e deixam a área mais livre para o espelho móvel. Chega a ser estranho que tenham insistido nesse tipo de construção em uma monoreflex já no final dos anos 50. Leicas e Contaxes, duas rangefinders, deveriam ter chamado a atenção para as vantagens dos obturadores de cortina. Mais gritante ainda, a Kine Exakta, primeira monoreflex para filme 35 mm, já existia desde 1936 com obturador de cortina. Teria sido um ótimo benchmark. Provavelmente, tinham em mente concorrer com a Contaflex, da Zeiss Ikon, e Retina Reflex, da Kodak AG, que incorreram no mesmo erro.
Os japoneses, por sua vez, na mesma época adotaram para suas SLRs (de Single Lens Reflex, ou monoreflex) o obturador de plano focal, sistema que logo viria a dominar completamente o mercado. Obturadores na lente, tipo leaf shutter, dificilmente conseguiriam acomodar em uma câmera com quadro 24×36 mm uma lente normal, digamos 50 mm com abertura f/1.8. Creio que uma f/1.4 ou f/1.2 seria impossível. A área que efetivamente se abre em obturadores desse tipo é relativamente pequena. Se for muito grande há um sacrifício nas velocidades em cenas de ação. Também as lentes mais curtas ficam muito difíceis de projetar, pois entre elas e o filme é preciso acomodar ainda o espelho e mais o obturador.
Menos grave, mas também uma aposta em que a Bessamatic perdeu, diz respeito à posição dos controles. A Voigtlander era criativa nesse ponto. Muito insistiram, por exemplo em um foco ajustado no corpo da câmera em vez do mais óbvio helicoidal no próprio tubo da lente. Esse era o caso da Prominent, da Vitessa e da Bessa II. Na Bessamatic enfim concederam em colocar o foco como um anel na lente. Mas quanto à velocidade e abertura, foram na contramão das tendências.
Os obturadores de plano focal levaram o controle da velocidade para o topo da câmera, caso das Nikon e Canon, por exemplo. Posição mais óbvia já que as cortinas estão realmente na traseira. Igualmente óbvio, deixaram o ajuste da abertura como um anel no tubo da lente. Para a Bessamatic os engenheiros da Voigtlander fizeram o contrário. Deixaram as velocidades como um anel no tubo da lente (natural para um leaf-shutter) mas levaram o ajuste das aberturas para o topo da câmera! Longe da iris. Isso pediu um mecanismo a mais para que a o girar um anel com eixo vertical, do lado esquerdo da câmera, as aberturas pudessem ser alteradas lá embaixo na lente.
Tendo a achar que os ajustes por anéis na lente devem ser aqueles que fazemos por último antes de acionar o disparador. Creio também que a sequência mais lógica é, normalmente: velocidade, abertura e foco. Nesse sentido, o sistema que ficou consagrado de velocidade no topo da câmera e abertura e tubo na lente, me parece o mais lógico. Talvez a Bessamatic tenha perdido um pouco mais de competitividade nesse ponto. Pelo menos, foi o contrário do que se consagrou no mercado de câmeras SLR. Criatividade que deu certo, com relação aos controles, foi das Olympus OM, que têm os três controles no tubo da lente. É o sistema que eu mais gosto.
Mas chega de falar de pontos onde a câmera estava já defasada em relação ao que estava acontecendo no mercado. Algumas coisas eram muito convenientes e até inéditas. Acima está o visor da Bessamatic Deluxe. Embora o fotômetro não seja através da lente, pode-se ajustar a fotometria acompanhando-a no visor. A agulha flutua conforme a iluminação e ao variarmos a abertura ou velocidade, temos que fazer coincidir a agulha com um indicador que sobe e desce quando mudamos velocidade/abertura. Dessa forma encontramos a fotometria correta. A Bessamatic usa um fotômetro de selênio, posicionado como uma janela no compartimento do prisma, e portanto não precisa de bateria alguma.
Mas o mais interessante, que nem estava presente nas Bessamatics do lançamento em 1959, mas que veio a ser incorporado justamente nesse modelo Deluxe, lançado em 1962, foi a possibilidade de ser ler velocidade e abertura diretamente no visor. É muito curiosa a solução dada para este problema em um tempo em que não havia eletrônica alguma na fotografia. Um segundo prisma foi colocado sobre o penta-prisma da monoreflex, com uma janelinha em forma de T, e é ele que leva a imagem das marcas no anel da lente para o topo do visor. Na foto acima, estamos em 1/125s e pouco mais fechados que f/8.
A ópticas disponíveis para a Bessamatic formam conjunto muito extenso para a época. Utilizam um sistema de baioneta e são dez opções de 35 a 350 mm. A lente normal padrão é a Color Skopar 50 mm f/2.8, mesmo conceito da Tessar da Zeiss como pode ser reconhecido na ilustração abaixo. Essa é um óptica de ótima performance e que equipava a maioria das folding cameras da Voigtlander para filmes 35 mm e 120 também. Um degrau acima, mais sofisticada e mais luminosa, é a Septon 50 mm f/2.0, uma lente com sete elementos como o nome indica. A super premium é a Skopagon 40 mm f/2.0, uma lente que alcança preços altíssimos entre colecionadores. Essas ópticas só se tornaram possíveis graças ao aperfeiçoamento dos métodos de tratamento anti-reflexo na década de 60. A Skopagon tem 9 elementos em 6 grupos.
O acabamento das lentes para a Bessamatic é muito bom. O cromo é de normalmente de boa qualidade e não é raro se encontrar lentes com aparência de novas. É muito elegante e agradável o uso do couro no anel de focalização nas lentes mais longas. As tampas são flexíveis e prendem muito bem mesmo sem clicks ou mecanismos.
Skoparex 35 mm f/3.4 e Super Dynarex 135 mm f/4
Outro cuidado, muito interessante no uso, é que no corpo da lente, em vez da habitual escala de profundidade de campo gravada, as ópticas para a Bessamatic apresentam dois ponteiros móveis (veja as pontas vermelhas nas fotos acima) que abrem e fecham conforme a abertura é selecionada. Fica muito fácil se ajustar a zona de foco com esses indicadores. Esta é uma característica que se encontra também nas sofisticadas Hasselblad, mas não sei de quem foi o pioneirismo.
Skoparex 35 mm f/3.4 e Super Dynarex 135 mm f/4
Muito bem pensado também foi manter, dentro do possível, a mesma rosca de filtro e acessórios para a maior parte das ópticas. Isso tornou-se padrão, mas não era algo presente na Contaflex da Zeiss Ikon (1953) ou na Retina Reflex da Kodak (1957), que seriam as concorrentes mais diretas da Bessamatic nessa geração dos anos 50.
Tanto a Color Skopar 50 mm f/2.8 como a Skoparex 35 mm f/3.4 e a Super Dynarex 135 mm f/4, utilizam a mesma rosca de 40,5 mm para filtros. Esse seria o harmonioso kit básico para uma Bessamatic com normal, angular e tele.
Além dos filtros coloridos a Voigtlander oferecia também conjuntos de lentes de aproximação.
Isto era interessante pois, diferente das lentes que viriam a equipar as câmeras monoreflex japonesas, com foco até 45 ou 50 cm, o foco mínimo para a lente normal era a 90 cm. As lentes de aproximação permitem um enquadramento menor de modo muito prático e direto.
Havia ainda, para a Super Dynarex 135 mm f/4, uma lente auxiliar especial para retratos. Normalmente a Super Dynarex foca até uma distância de 4 metros. Com essa lente extra pode-se focar entre 4 e 2 m. Esse ganho, para uma 135 mm, já permite um plano bem fechado para um retrato.
Com a Septon, por ser 50 mm f/2.0, não foi possível se manter o filtro em 40,5 mm. Mas obviamente a Voigtlanter oferecia um conjunto completo de acessórios também para as ótpticas mais sofisticadas.
A primeira lente Zoom foi para a Bessamatic
Já existiam lentes zoom, com distância focal variável, antes da Bessamatic. Existiam em telescópios desde 1834, provavelmente apenas para se facilitar a mira. No cinema, o primeiro uso de uma lente zoom foi na cena de abertura do filme mudo “It”, que pode ser visto no Youtube (de 2:00 a 2:30 min – fonte Wikipedia). Porém, para fotografia as dificuldades de projeto eram maiores.
- No cinema, as cenas em movimento exigem menos qualidade, menos definição por todo o campo da imagem. Não analisamos muito, não varremos todos os detalhes e tendemos a acompanhar aquilo que se move e que está normalmente mais no centro.
- No cinema, com o filme correndo na vertical, utiliza-se apenas meio quadro, isto é: 18 x 24 mm.
Isso quer dizer que para fotografia o lens designer tinha não só que produzir uma imagem mais nítida em todo o campo da imagem, mas essa imagem ainda tinha que ser duas vezes maior que a que pedia a lente para cinema.
Deve ser um ponto também que talvez a demanda por lentes zoom em fotografia teria sido inexistente até então. Apenas em uma câmera monoreflex o zoom faz algum sentido e esse sistema estava ainda em desenvolvimento nos anos 50. A Exakta foi a primeira com filmes 35mm em 1936, mas outros fabricantes, com maior peso demoraram um pouco para entrar e consolidar o novo segmento.
Seja como for, é ponto pacífico hoje que a Bessamatic da Voigtlander foi a primeira câmera 35 mm a ostentar uma lente zoom chamada Zoomar.
Com ela, pode-se variar de 36 a 82 mm. Provavelmente pesa mais que uma 35 mm + 50 mm + 90 mm da mesma Voigtlander. Mas devia ser motivo de muito orgulho para os early adopters poder experimentar as infinitas possibilidades entre 36 e 82 mm.
Acima uma comparação do mesmo assunto fotografado com a Zoomar em 82mm, à esquerda, e 36 mm, à direita. Ambas em f/8. Embora os automóveis sejam aproximadamente contemporâneos da câmera, a foto foi realizada em dez/2021.
Muito impressionante ainda, ela oferece f/2.8 graças ao imponente conjunto frontal.
O Zoom em si é produzido quando um grupo de 7 elementos se desloca dentro do tubo da lente mantendo a frente e a traseira inalteradas. O foco, é feito apenas pelo movimento do elemento frontal. Ao todo são 14 elementos com 3 dubletos colados. Um verdadeiro tour de force de projeto e produção. Esta lente já foi otimizada com a ajuda de computadores e pela sua complexidade seria provavelmente impossível de outro modo. Foi também uma lente a utilizar novos vidros ópticos.
Externamente, para se operar o deslocamento do zoom, um anel deve ser transladado longitudinalmente. Esse movimento se manteve mesmo em lentes tipo zoom mais recentes, antes que uma nova geração usando um anel giratório, como o do foco, viesse a substituí-lo.
Embora fabricadas na Alemanha, o desenho foi de Dr. Frank G. Back, de uma firma de mesmo nome, a Zoomar, em Long Island New York . Ele já vinha desenvolvendo lentes com distância focal variável para cinema e TV e o próprio nome Zoom, que ficou consagrado até hoje, foi sua criação. Um lançamento tão importante não ficou exclusivo da Voigtlander. Também foram produzidas Zoomars para a Exakta, Kodak Retina Reflex e Contax.
Aproveitando, é possível hackear as lentes que servem na montagem Voigtlander para que sirvam na Kodak Retina Reflex e vice versa. Isso se deve ao fato de que o obturador das duas é o mesmo Synchro Compur. Se houver interesse, visite esta página para ver como se faz: Retina Voigtlander lens swap.
No mais, a Bessamatic é uma câmera muito utilizável nos dias de hoje. Apesar de ser um pouco pesada com quase 1 kg, ela tem o corpo alto e isso ajuda a manter a firmeza. Algumas coisas podem incomodar o fotógrafo habituado a câmeras mais recentes, por exemplo, o espelho não retorna à posição depois do disparo. É preciso avançar o filme para armá-lo junto como o obturador. Sua manutenção é cara pois o acesso ao obturador é difícil. Todo o bloco da lente precisa ser removido e isso implica em “desconectar” os mecanismos acionados pelo corpo da câmeras. Porém, se for usada regularmente e com cuidado, é uma câmera que por ser toda mecânica e muito bem construída irá durar virtualmente para sempre.
Ótimo review, Wagner! Obrigado por compartilhar. Parabéns!
Ouvindo suas histórias e conhecendo a história da fotografia.