Fiz esta foto em uma competição de moto-cross aqui na minha cidade. Estava com uma Leica M3 e lente Summicron 50mm f/2, ambas da década de 1950. O filme era Double-X. A imagem acima é um scan do negativo inteiro. Embora meu objetivo seja fazer a impressão pelo método também analógico, eu sempre faço primeiro um scan para escolher as fotos e planejar o que e como que irei imprimir.
Para mim, o ponto interessante nela é a interação do menino com a moto . Embora não vejamos seu rosto, a posição e atitude tão relaxada dele nos leva a crer que ele estava encantado com os saltos dos motociclistas. O que atrapalha muito é a sombrinha que embora bem mais distante fica sobre a cabeça dele. Ela está interferindo demais e pensei que seria muito bom se pudesse sumir com ela e também cortar um pouco da paisagem, como se estivesse com uma lente mais longa. Para simular no que isso daria, fiz isso no Photoshop e obtive o resultado abaixo.
Muito melhor, não? Poderia fazer um scan mais caprichado, retocar digitalmente e imprimir assim. Mas essas fotos que tenho feito de pessoas e eventos da cidade vão para álbuns onde só coloco impressões analógicas em papel fibra. Então estava fora de questão fazer com ink-jet.
Como eu gostei muito da foto resolvi fazer um exercício de retoque analógico, como se fazia antigamente, que consiste em imprimir, retocar a cópia, re-fotografar e imprimir novamente. Aqui vai o passo a passo.
1 – Positivo de base
Como nos meus álbuns as fotos costumam ter 18×24 cm ou menos, eu não precisava partir de algo maior que isso. Fiz uma impressão nesse tamanho, 18×24 cm.
Usei um papel RC, resin coated, da Ilford, pois como iria raspar o que queria eliminar, achei que o papel resinado rasparia melhor que o fibra. Raspei com muita suavidade, sem forçar a lâmina, com o papel ainda molhado. A superfície resistiu bem e ficou lisa e sem falhas.
2 – Aplicar máscara protetora
Apliquei uma máscara apenas na região em contato com a raspagem. É uma máscara que se vende em casas de materiais artísticos. Ela é bem fininha e sua cola não afeta a superfície onde é aplicada. Pode depois ser facilmente removida. Usando-se uma lâmina bem pontiaguda a máscara é cortada nos contornos da imagem. O ideal é ter o cuidado de afundar a lâmina apenas o suficiente para cortar/marcar a máscara e não arranhar o papel.
3 – Pintura a pincel
A seguir é preciso pintar a região que foi raspada de modo coerente com o que está em volta. No meu caso seria apenas o céu, um fundo chapado. Usei tinta acrílica misturando preto e branco. Não é preciso se preocupar com brancos quentes ou frios pois como será re-fotografado apenas a luminância é que conta.
Um ponto importante a observar é que a tinta tende a escurecer ao secar. Por isso é preciso preparar uma tonalidade mais clara. Para acelerar a secagem e avaliar o resultado eu usei um soprador térmico a uma temperatura morna.
Pode acontecer da pintura ficar algo bem grosseiro como mostra a foto acima. Nela podemos observar a tinta seca já no valor cinza do fundo, tinta ainda molhada bem em relevo e mais clara e podemos ver também a máscara que ainda não foi removida.
4 – Finalização com aerógrafo
Por mais que a tonalidade de cinza esteja adequada, sempre fica uma passagem dura entre a parte pintada e o fundo original. Para esmaecer essa transição um aerógrafo é o ideal. Usando a mesma tinta, com ele pode-se fazer um degradé suave. Foi nessa hora que a máscara se fez realmente necessária para proteger o que não poderia ser pintado.
Uma pergunta bem pertinente seria: por que raspar e pintar com pincel se no final foi usado um aerógrafo? O motivo é que por ser a tonalidade do céu um cinza bem claro, seria difícil cobrir o guarda-chuva escuro com só com o aerógrafo. A raspagem trazendo tudo para branco e a carga de tinta forte proporcionada pelo pincel adiantaram bastante para se obter uma boa cobertura no tom bem próximo. Se fosse para apagar deixando um tom bem escuro, em uma cena de noite, por exemplo, poderia-se pular direto para a fase do aerógrafo pois a tinta escura cobre melhor que a tinta clara.
Neste ponto, conforme o ângulo que se olhe, praticamente não notamos o retoque. É o que mostra a foto acima. O que mais destaca o retoque do seu entorno é o fato de que o cinza ficou um pouco mais frio que o cinza do papel. Mas essa diferença irá sumir quando ela for re-fotografada pois o filme preto e branco não será capaz de registrar uma diferença tão sutil.
Além da diferença de tonalidade mais fria, esta cópia retocada não tem qualidade de apresentação pois a diferença de brilho e textura é brutal como se vê na foto acima, tirada de um ângulo desfavorável. Mas embora seja uma cópia “feia”, ela está pronta para o próximo passo.
5 – Re-fotografando
O negativo original foi feito com uma Leica M3, como já foi dito, isso quer dizer que se trata de um 35mm no formato 24 x 36 mm. O ideal para se produzir um novo negativo é que este seja maior pois a imagem em papel tem muito menos detalhes e brilho que uma imagem real. Um negativo grande renderá melhor esses detalhes e o seu grão tenderá a não interferir na cópia final.
Foi utilizada uma Linhof Baby e um negativo 6,5 x 9 cm. O filme foi Fomapan 100, com fotometria em ISO 100 mesmo. Usei dois flashs a 45º, um de cada lado sendo cada um com 320W. A lente foi uma Tessar 105mm da década de 1950, portanto já com tratamento anti reflexo. Estava fechada em f/11. Esta lente é famosa por ter um corte, uma definição, muito bom. O revelador foi o Parodinal 1:100. Embora tenda a dar grão, eu esperava que o negativo grande compensaria esse efeito, por outro lado, como o Parodinal tem alta acutância, ele ajudaria na preservação dos contornos que o papel tende a esmaecer.
O resultado foi muito bom e já prometia que o retoque fora bem sucedido. Nesses casos o bom ou ruim vem sempre da comparação com o original. Há sempre uma perda de definição pois a cada passagem de um suporte a outro existe uma interferência da óptica e do suporte em si, por conta da resolução que nunca é infinita. A alteração vai sempre no sentido de reduzir as diferenças, diferenças de tonalidade, diferenças nas passagens de uma tonalidade a outra, causando perda de contraste e faixa tonal.
O negativo maior é uma forma de se lutar um pouco contra isso. O uso de um revelador de maior acutância e revelação puxando mais o contraste são formas de tentar enganar um pouco a resolução e salvar a faixa tonal, respectivamente. No que diz respeito à esta última, ficou muito bom o negativo 6,5 x 9 cm. Pode-se notar na imagem acima que ficou mais comprimida na diferença entre altas e baixas luzes, mas não é nada que com o multi-contraste do papel fotográfico não possa ser compensado.
6 – Impressão final
A impressão final foi feita em 15 x 20 cm e aproveitei para cortar um pouco mais da cena e dar mais destaque ao menino e a moto. O negativo estava bem equilibrado e não deu trabalho nenhum para acertar a exposição e o contraste que foi feito com um filtro de grau 2.
Acima temos um scan da impressão final em 15 x 20 cm. Sabendo-se do retoque e observando-se atentamente os contornos na cabeça do menino pode-se notar algo estranho, como se vê no detalhe abaixo. Ele é do mesmo scan acima, realizado em 600 dpi. Mas, para fins de exibição, para pessoas que não sabem que a foto foi retocada, ou para a minha memória desse menino encantado com o show dos motociclistas em um domingo ensolarado, a foto final é muito mais efetiva e afetiva que a original.
Dito isso, se compararmos a primeira foto deste post que foi o scan direto do negativo original com o scan da cópia final, é evidente que a transformação cobra seu preço. A vida é assim.
Conclusão
É um processo trabalhoso que não se compara com a facilidade do mundo digital se o objetivo for unicamente a foto retocada. Mas fazer isso hoje, sem sair da fotografia analógica, é um desafio divertido e no final muito gratificante de se ver no resultado final.
Existem muitos outros tipos de retoque em fotografia analógica. O retoque por rebaixamento na cópia final, para clarear áreas da fotografia ou até eliminá-las para o branco lavado, por exemplo, sempre foi muito utilizado para fins mais estéticos. Outro tipo de retoque, muito usado em retratos, era feito no negativo para eliminar rugas, manchas da pele ou atenuar volumes. Também para acrescentar um brilho nos olhos, recorria-se ao retoque pontual. Mas estes são leves se comparados ao retoque com re-fotografia, pois com ele é possível se incluir ou eliminar qualquer coisa através da pintura e mesmo colagem reunindo as coisas mais diversas. O resultado mais ou menos convincente depende apenas da habilidade do retocador. Mas se lembrarmos que desde o início muitos fotógrafos tiveram formação como pintores e desenhistas, é preciso se tomar muito cuidado com “fakes” do passado. Não houve época ingênua na fotografia e só por ser fotografia, sem que se conheça a origem ou processo, a fórmula de Roland Barthes, “ça a été” (isto foi, no sentido de que o que se vê de fato aconteceu) tem um valor apenas teórico. Caso clássico de fake, até sem retoque algum, é o das Fadas de Conttingley.
Um caso anedótico de alterações em fotografias, talvez o mais famoso e muito citado, é o que se observou no período de Josef Stalin na União Soviética. Sabe-se que ele mandou matar dúzias de pessoas que lhe foram muito próximas, além de centenas de milhares das mais distantes. “Companheiros” que caiam na desconfiança do líder eram assassinados. Não satisfeito em apagá-los da vida real, as fotos oficiais do regime eram também retocadas dando sumiço nas pessoas. Os exemplos abaixo mostram casos que vão do simples apagar contra um fundo mais ou menos neutro até outros em que o cenário precisou ser recomposto para preencher o vazio. A notar que há uma perda de detalhes e cinzas médios nas novas versões. Compare, por exemplo, o palanque onde está Lenin na primeira foto, no antes e depois, ou os casacos escuros nas fotos seguintes. Estas imagens vieram do site: Russia Beyond, caso tenha curiosidade histórica além da fotográfica, lá é possível se ter mais detalhes de quem eram os apagados.