A Kodak foi um dos gigantes da fotografia e por décadas foi a maior fabricante de filmes fotográficos do mundo. Deve ser essa, para a maioria dos que já tiveram algum contato com a marca, a primeira lembrança que ela trás: filmes Kodak. Mas é também importante dizer que muitas câmeras da Kodak fizeram história, a começar pela box camera Brownie nº2, que lançou o filme 120, utilizado até hoje. Fabricaram também câmeras grandes, dobráveis, de fole, que fizeram enorme sucesso. Depois vieram dezenas de modelos muito simples, em bakelite e plástico, para filmes 127, como a Kodak Baby Brownie Special. Finalmente, mais no auge da fotografia analógica, nas décadas de 60 a 80, uma série de câmeras de baixo custo para filmes 126 foram produzidas aos milhões em todo o mundo.
O que talvez seja menos conhecida é a participação da Kodak no mercado de câmeras mais sofisticadas para filmes 35 mm. Essa investida por uma área até certo ponto fora de sua vocação, uma empresa que sempre chamou para si o papel de popularizar a fotografia, fez surgir uma linhagem de câmeras que são hoje uma alegria para quem gosta de fotografia analógica e coleciona câmera antigas. São as Kodak Retina. Uma extensa série de modelos que começaram com câmeras visor, na década de 30, depois rangefinder (telêmetro), na década de 1940, e no final, nos anos 50 veio se somar à série a Retina Reflex, uma single lens reflex (SLR). Todas elas construídas solidamente e com ópticas muito boas e às vezes até mesmo surpreendentes.
A primeira Retina, aproveitando sua filiação de uma empresa líder em filmes, foi lançada junto com o filme 35 mm em preloaded disposable 35mm film cartridges (cartuchos pré-carregados e descartáveis). Até então o filme era comprado em rolos a granel e carregado em cartuchos reutilizáveis. Era o caso da recentemente lançada Leica que foi apresentada comercialmente pela primeira vez em 1925. Ela esteve entre as primeiras a utilizar os filmes perfurados de 35 mm que eram produzidos originalmente para cinema. Por essa razão, o filme precisava ser manualmente enrolado em um cartucho próprio para câmeras fotográficas.
Acima vemos um robusto cartucho reutilizável da Zeiss Ikon, com sua elegante caixinha metálica. Ao lado, um cartucho descartável (recente), no formato lançado pela Kodak em 1934, e que se tornaria padrão da indústria.
É curioso se pensar que os diretores da Leitz, enquanto estudavam lançar a nova câmera, estiveram realmente preocupados se os filmes para cinema iriam melhorar o suficiente para uso em fotografia de modo a render a qualidade que as ópticas desenhadas para a Leica podiam oferecer. Nem eles sonhavam que a produção de filmes 35 mm para fotografia iria um dia se emancipar do cinema e se tornar um mercado gigantesco.
Em cinema, a sensibilidade alta é mais importante que o grão fino, já na fotografia, que permite tempos de exposição maiores, a relação desloca-se mais em favor do grão fino. Esses cartuchos para uso específico nas novas câmeras foram decisivos em dar total autonomia para o novo formato e uso do filme 35 mm em fotografia. Novas emulsões foram desenvolvidas tendo-se em mente as necessidades específicas da imagem parada e seu posterior processamento. Foi mais uma revolução no ato de fotografar na qual a Kodak teve um papel fundamental.
É ainda curioso pensarmos que nos dias de hoje, nessa nova fase da fotografia analógica, talvez agonia, talvez renascimento, muita gente está voltando a comprar filme a granel (bulk) para produzir seus próprios cartuchos. Recuperando no lixo os antigos “descartáveis” ou comprando reutilizáveis, vintage ou novos, que ainda aparecem no mercado. É uma forma de baixar o custo unitário e ter maior flexibilidade quanto ao número de fotos por filme.
Também não deve ser muito conhecido que essa linha de Retinas não foi criada e nem fabricada nos Estados Unidos. Sabemos que a Kodak é um ícone do empreendedorismo americano. Seu fundador, George Eastman, é celebrado como um herói nacional. Foi modelar, típico realizador, vindo de origens humildes, foi criativo, tomou riscos, trabalhou duro e construíu um império. Esse inegável tino para os negócios foi suficiente para fazê-lo perceber que Rochester não seria o lugar ideal para atacar o mercado de câmeras com especificações mais ambiciosas. A Alemanha, essa sim, era um centro de excelência em câmeras e lentes, com muitas firmas, start-ups diríamos hoje, pequenas e promissoras à espera de capital. Em 1931 a Kodak comprou a Nagel Camera Werks AG, em Stuttgart. A firma tinha apenas 3 anos, mas pertencia a August Nagel, um experiente e criativo designer, um dos fundadores da Zeiss Ikon. Foi assim que nasceu a Kodak AG, berço das Retinas. O AG, quando acompanha os nomes das empresa alemãs, diz respeito ao tipo de empresa, equivale ao nosso Sociedade Limitada com sua abreviatura Ltda. AG significa Aktiengesellschaft.
Esta pequena introdução foi só para posicionar a Kodak Retina Reflex como o auge de uma longa linha de desenvolvimento de câmeras alemãs que embora não tenham penetrado no mercado profissional, nem por isso foram de qualidade inferior a de seus melhores concorrentes. Eram muito boas e confiáveis no que se propunham a fazer e nos conceitos em que se apoiavam. As que foram minimamente bem conservadas ainda funcionam plenamente e continuarão assim por muito tempo.
Kodak Retina Reflex
As Retina Reflex foram fabricadas de 1957 até 1966 com importantes diferenças entre os modelos nesse relativamente curto espaço de tempo. As primeiras tinham um sufixo C que identifica um sistema de lentes no qual apenas os elementos frontais são trocados para oferecer diferentes distâncias focais. Um grupo de lentes fica permanentemente no corpo da câmera tendo o obturador à sua frente. Este é o mesmo sistema da predecessora Retina Rangefinder que já oferecia essas lentes intercambiáveis.
A ilustração acima, da Retina IIc, mostra bem como é isso. O bloco de lentes da frente pode ser removido e substituído por outro oferecendo outra distância focal. O bloco traseiro, depois do obturador permanece na câmera. É o mesmo sistema da Contaflex, da Zeiss Ikon, lançada em 1953.
Veja agora nessa nova ilustração o mesmo tipo de lente C em uma Retina Reflex. O obturador, um Synchro Compur, fica em uma caixa em forma de um grosso anel com secção mais ou menos quadrada marcada em azul no corte vertical do desenho acima. As lâminas do obturador ficam posicionadas aproximadamente na faixa pintada de vermelho. As lentes da esquerda são removíveis e as da direita fazem parte do corpo da câmera.
O sistema C não deve ter sido muito bem recebido pois rapidamente a Kodak AG tratou de oferecer uma nova Retina Reflex sem lentes fixas no corpo da câmera. Podemos imaginar a dificuldade que deve ter sido levar o obturador Synchro Compur para trás de todo o bloco óptico tendo ainda o espelho móvel entre ele e o filme. Isso foi feito a partir de 1959 quando veio a Retina Reflex S, na qual as lentes são ópticas completas e independentes.
O novo arranjo permitiu maior flexibilidade e melhor qualidade final da imagem, pois cada desenho é otimizado para uma distância focal específica. No folheto reproduzido acima vemos objetivas de 28 mm até 135 mm, mas existia também a opção de uma 200 mm f/4.8. A Retina S oferecia também um fotômetro acoplado aos ajustes de velocidade e abertura, de modo que ao se variar estes parâmetros era possível chegar à exposição correta. Era uma vantagem sobre as câmeras com fotômetro que precisavam passar pelos números EV (exposure value) ou qualquer outra medida da luminosidade para então se conhecer os possíveis pares velocidade/abertura.
Acho curiosa a última frase no texto do folheto acima: “São câmeras para se ter com orgulho”. Parece um lembrete pronunciado com certo amargor. Por essa época, a imagem cult, o valor intangível de câmeras como a Leica, Contax ou Rolleiflex estavam consolidados. Devia ser difícil para os engenheiros da Kodak AG entender por que suas Retinas, tão bem projetadas e fabricadas, não faziam parte desse panteão. Seria por conta da tradição de câmeras populares da Kodak? Talvez. Mas havia algo mais que não estava bem e que só o tempo poderia mostrar.
Kodak Retina Reflex III
A Retina Reflex III foi produzida de 1960 até 1964. Uma mudança em relação à S é que além de ter o fotômetro acoplado, o acoplamento é visível no visor da câmera. Ao atuar na velocidade ou abertura o ponteiro em forma de pinça deve coincidir com o ponteiro simples que flutua conforme a condição da luz. O ajuste de ISO pode ser feito em um anel no topo da câmera.
Houve também uma Retina IV na qual ainda era possível se ver velocidade e abertura no visor da câmera através de uma janela no painel frontal que cobre o prisma. Um desenvolvimento que apareceu também na Bessamatic, da Voigtlander, mais ou menos na mesma época. Não sei de quem foi o pioneirismo. Eram soluções mecânicas e ópticas que logo seriam resolvidas com leds e displays nas câmeras eletrônicas, provavelmente por uma fração do preço.
A indicação do fotômetro é também visível em uma pequena janela no topo da câmera. Mas, olhe bem para a foto acima. Onde está a alavanca de avanço do filme?
Fica na parte de baixo. Essa é uma idiossincrasia de várias Retinas. Como o eixo da bobina do filme vai de cima a baixo, eu acho até inteligente que tenham se perguntado, por que não embaixo? No uso, essa é uma característica fácil de se acostumar. Mas não acho que seja propriamente uma vantagem.
Na base da câmera está também o contador de fotos. Ele utiliza o sistema de contagem regressiva e quando chega a 1, ele trava a câmera. Não é mais possível se avançar o filme pois entende-se que não há mais filme para avançar. É um pouco autoritário pois os filmes não são assim tão precisos, sempre dá para se tentar uma última foto além das 36. Mas para liberar é preciso deslizar o botão com a seta (à esquerda do contador) e assim a câmera entende que você carregou um novo filme. Caso o filme tenha menos de 36 poses, é preciso deslizar várias vezes o botão até chegar ao número correspondente de fotos. Isso, é claro, apenas no caso em que você queira que o contador conte corretamente.
A pequena roda dentada que aparece já na base que prende a lente, logo acima do contador, é por onde são ajustadas as aberturas. A ideia é que o fotógrafo ajuste a velocidade em primeiro lugar, de acordo com o tipo de assunto que quer fotografar. Depois, o ajuste fino da exposição, se faz olhando-se pelo visor e atuando-se nesse anel na base da câmera.
Não é má ideia, mas considerando-se que a iris é um dispositivo em forma de disco coaxial com o tubo da lente, um anel externo a esse tubo seria a solução mais óbvia, simples, barata e que por tudo isso foi mais tarde a consagrada.
Na parte interna, onde o filme é transportado, as Retinas são bem construídas e as guias desenhadas de modo a facilitar o carregamento do filme e seu transporte sem que sofra qualquer tipo de abrasão.
Lentes
A lente normal na Retina Reflex é uma Retina Xenar 50 mm f/2.8, fabricada pela Schneider. Essa é uma lente de 4 elementos em três grupos com o conceito da Tessar. A Retina Reflex III,da minha coleção, tem como lente normal uma Xenon 50 mm f/1.9. Esta é uma lente sofisticada com 6 elementos em 4 grupos e desenhada por Tronnier em 1935. Albrecht Tronnier foi um importante opticista que criou e redesenhou muitas lentes famosas. Para a Voigtlander, por exemplo, trabalhou na Color-Heliar, Ultron e Nokton. A Xenon passou por adaptações e revisões e existem versões com 7 elementos e diferentes aberturas.
Com os mesmos 50 mm e f/1.9 existem as versões Retina-Xenon e apenas Xenon. Esta última era vendida com a Instamatic Reflex (câmera para filmes 126) e a Retina-Xenon acompanhava a Retina Reflex para filmes 35 mm. Creio que a principal diferença é que a Retina-Xenon possui ponteiros deslizantes que indicam a profundidade de campo. Algo muito cômodo e melhor que as tradicionais tabelas gravadas, como é o caso da Xenon na foto acima. No mais, eu já fotografei com a Xenon nas Retina Reflex III e não houve problema algum.
Nesta outra foto vemos duas lentes que complementam a objetiva normal, formando o kit tradicional: normal, tele e angular. Na câmera está a Retina-Curtagon 35 mm f/2.8 e ao lado a Tele-Xenar 135 mm f/4.0. Diferente da Bessamatic, cada lente do jogo básico: 35, 50 e 135 mm, demandam um filtro diferente. A Curtagon usa até mesmo um sistema de baioneta.
O botão de disparo
O ponto onde a Retina Reflex III realmente deixa a desejar é no posicionamento do botão de disparo. Nas primeiras Retinas de visor, ainda na década de 30, ele estava convenientemente posicionado no topo da câmera. Esse era o caso até da Retina Reflex S. Nessa posição ele nos permite agarrar firmemente o corpo da câmera e deixar livre o indicador para cair naturalmente sobre o botão de disparo. Mas na Retina Reflex III, certamente por dificuldades de projeto, talvez de custo, ele foi posicionado na frente, ao lado da lente.
Quando o botão está no topo, podemos pressionar a câmera entre o meio de nosso indicador e a base de nosso polegar do lado oposto. Pressionando-se o prisma ou visor contra a testa, temos uma situação muito estável. Movemos apenas a ponta do indicador para acionar o obturador enquanto fazemos o foco com polegar e indicador da mão esquerda. Já com o disparador na frente da câmera fica mais difícil se obter o mesmo nível de estabilidade
Acredito que a própria Kodak não gostou muito dessa solução. A foto acima é de um manual da Retina Reflex III. O texto diz: “A ilustração mostra uma posição para fotos horizontais; outras posições, é claro, são possíveis”. Só faltou um “Sorry by that”.
Ainda sobre o disparo do obturador, é importante notar que, como na Contaflex da Zeiss Ikon e na Bessamatic da Voigtlander, todas essas câmeras não ofereciam um espelho de retorno instantâneo após disparar o obturador. Isso significa que você obtém um visor preto cada vez que tira uma foto. Isso é de alguma forma útil como um momento para pensar sobre o que você acabou de fazer. Após essa breve reflexão, enquanto a imagem que você acabou de capturar ainda flutua em sua mente, você pode avançar o filme. Isso ativa o obturador e posiciona o espelho para você fazer a próxima.
Quem iria imaginar?
Criticar estas câmeras alemãs da década de 50 é um pouco um exercício de prever o passado. Depois que as japonesas chegaram com o novo padrão construtivo, de posicionamento dos controles e novos materiais, varreram para fora do mercado todas estas experiências da Kodak AG, Voigtlander e Zeiss Ikon. Revendo agora, fica fácil apontar os ensaios feitos por estas empresas como “erros”. A Exakta, da Ihagee, localizada em Dresden, é uma excessão em vários aspectos, a começar pelo obturador de cortina que ela adotou desde o princípio. Porém, seu design era datado e precisaria de uma revisão completa. Mas, por outros motivos, principalmente a guerra e a administração que assumiu a empresa, ela não floresceu com a força que seus acertos iniciais permitiriam.
Creio que o mais justo é ponderar que o conceito das SLR, que fora até então um nicho, ainda estava por ser massivamente adotado e ainda em fase de desenvolvimento. Muitas soluções criativas, do ponto de vista de engenharia, foram implementadas pelas gigantes do setor que estavam ainda testando as águas. Chama a atenção, por exemplo, a rapidez com que novas soluções, com mudanças significativas, eram adotadas. Provavelmente antes que o desenho anterior e sua ferramentaria tivessem sido amortizados por um volume substancial de vendas. Mas essas gigantes estavam talvez embebidas demais no passado, em premissas que não imaginavam que poderiam ser desafiadas, e assim perderam o momento e o rumo.
Abaixo algumas fotos que fiz com essa Retina Reflex. Nas que eu lembrei, coloquei com qual lente foi. Mas acho que dá par notar que não foram feitas com a intenção de mostrar as qualidades das ópticas. Não foram “testes” de câmera ou de lentes. Apenas fotos feitas só pelo gosto de fotografar.
Suas matérias são sempre didáticas, bem escritas e muito bem ilustradas, mais uma vez parabéns! Adorei.