Invenção da Fotografia e Modernidade

Newton investigando a decomposição da luz solar

Embora os século XVI e XVII possam ser considerados como o nascimento da Ciência Moderna, quando nomes como Galileo Galilei (1564-1642), Isaac Newton (1642-1727), Johannes Kepler (1571-1630), Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes: (1596-1650), lançaram suas bases e métodos, o uso do conhecimento científico para gerar tecnologias só iria se expandir realmente mais de duzentos anos após esse período. Estes senhores estavam muito mais preocupados em desvendar os mistérios do universo do que em possíveis aplicações práticas de suas teorias.

A fotografia, que oficialmente nasceu em 1839, insere-se totalmente nesse padrão. O básico sobre o comportamento da luz e sua influência sobre certas substâncias já era conhecido de longa data. A razão dessa demora, dessa longa gestação, vai muito além de dificuldades técnicas ou falta de conhecimento dos princípios físico/químicos em questão. Para que a fotografia nascesse uma mudança de mentalidade, de modo de encarar a vida e até do nosso papel aqui nesse mundo, fez-se necessária. Este é o tema deste post no qual irei explorar, através da análise de documentos de época, quais foram as motivações e razões do sucesso imediato das imagens mecânicas produzidas pela fotografia.

O que estava em jogo era um certo desencantamento do mundo com uma redefinição do religioso, a passagem das monarquias hereditárias para repúblicas e eleições, do sistema agrário para o industrial, dos ideais aristocráticos de honra e descendência para a valorização do trabalho como meio de enriquecimento e ascensão social, enfim, de todo o pacote da Modernidade trazidos pelo Iluminismo ou Revolução Burguesa, que são nomes alternativos ao mesmo conjunto de transformações vistas por um ou outro ângulo.

Um personagem central para o nascimento da fotografia foi o francês Nicéphore Niépce. Por sorte, ou talvez até porque não poderia ser de outro modo, ele é um exemplo que ilustra plenamente todas essas transições que prepararam o campo para a fotografia. Nele encontramos todas as ambiguidades, incertezas e pressões que a passagem de uma era a outra trouxe durante o período de transição. Por esse motivo ele será justamente o ponto de partida desta análise.

Joseph Nicéphore Niépce

Nasceu de uma família rica e de origem burguesa, mas possuindo já alguns privilégios que somente uma família nobre normalmente teria. Seu pai era advogado do tribunal, conselheiro do rei e encarregado de assuntos de governo em Chalon-sur-Saône. Nessa época, podemos dizer que dois tipos de aristocracia conviviam na França. Uma era de origem remontando a tempos medievais, cavaleiros, cujos ancestrais invariavelmente foram guerreiros e proprietários de grandes domínios agrários. A outra era composta de famílias da alta burguesia que receberam títulos de nobreza outorgados pelo rei (apenas Luis XIV distribuiu títulos de nobreza a 20 mil famílias).  Mais ecléticos e mais numerosos que os aristocratas tradicionais, estes prestavam-se muito bem para atuar como funcionários públicos administrando castelos, aduanas, portos, possessões, patrimônios e obras da coroa. Eles tinham competências em profissões liberais e de negócios, além das armas, esta que era praticamente a única competência exigida de um aristocrata tradicional. A família de Nicéphore Niépce pertencia a esta segunda categoria. (saiba mais sobre Nobreza e Superioridade)

O que atesta na prática que a família de Nicéphore possuía algum status nobre é o fato de que teve que se dispersar e se esconder durante a Revolução Francesa quando boa parte da corte foi para a guilhotina. O próprio Nicéphore escolheu uma carreira militar no exército – isso foi logo após a morte de seu pai em 1792 (ele tinha 27 anos). Seu irmão, Claude, fez o mesmo na marinha. Foi a estratégia para distrair a atenção das conexões aristocráticas da família. Mas nem ele nem seu irmão tinham qualquer vocação militar e ambos abandonaram a carreira quando as coisas esfriaram. Ambos voltaram a Chalon para viver na confortável casa onde nasceram. A revolução levou uma grande parte da fortuna da família, mas o que restou ainda era suficiente para continuar vivendo uma boa vida como parte da élite chalonaise.

Nicéphore e Claude receberam uma educação de alto nível no seminário Peres de la Congregation de l’Oratoire e tiveram até mesmo um tutor privado como complemento. Esta educação sólida foi com certeza importante para que os irmãos se decidissem formar uma parceria dedicada a invenções e novas tecnologias. O clima era muito favorável. A mentalidade naquele tempo era toda sobre ciência, pesquisa, novas máquinas e descobertas como meios para chegar ao bem-estar geral na sociedade, longe da tutela da aristocracia e da igreja. Os dois irmãos se lançaram em alguns projetos e, entre eles, o mais famoso e admirável, foi um motor de combustão interna que chegou a impulsionar barcos experimentais em Bercy – Paris, no rio Sena. O projeto foi elogiado, visto como muito promissor e obteve uma patente por um decreto napoleónico, mas … eles nunca conseguiram ganhar dinheiro com isso. Claude mudou-se para Londres para vendê-lo – motivado pelo fato de que o que viria a ser chamado de Revolução Industrial, estava mais acelerada na Inglaterra e novas máquinas normalmente atraiam muito interesse. Mas nem mesmo com investidores ingleses foi possível iniciar qualquer negócio com o Pyreolophore – nome que deram a sua invenção.

A longa estadia de Claude em Londres (1817 a 1828) significou nova queda nas condições financeiras da família. Em 1827, Nicéphéore também decidiu ir a Londres onde encontrou seu irmão muito doente e soube que nunca houve progresso algum com o projeto Pyreolophore. Claude morreu em 1828.

Primeiras experiências com a fotografia

Um segundo propósito na viagem de Nicéphore a Londres foi relacionado a suas experiências com o que mais tarde seria chamado fotografia. Depois de alguns sucessos em sensibilizar com betume placas metálicas para impressão por contato utilizando a luz solar, Nicéphore pretendia submeter seus resultados à Royal Society of London. Lá ele conheceu Francis Bauer, que era secretário da Sociedade, explicou-lhe o que havia feito, o que pretendia e foi solicitado a escrever um relatório. Lendo seu relatório (Fouquet p.149) Vemos que sua abordagem não era muito vendedora. Primeiro, ele passa por todas as deficiências de sua técnica, todos os problemas ainda não resolvidos, suas incertezas sobre materiais ainda não testados, faz segredo sobre os procedimentos que utiliza, e então declara que não queria dar nenhuma vantagem à Inglaterra em detrimento de qualquer outro país e que ele estava lá apenas para obter a opinião dessa instituição de prestígio e salvaguardar por uma apresentação pública o reconhecimento da sua prioridade na descoberta. Bem, não é de admirar, ele não conseguiu ser aceito para apresentar sua invenção em nenhuma das reuniões da Royal Society. Ele trouxe amostras de suas fotografias, feitas em placas de metal, causou admiração em seus interlocutores, mas sigilo demais sobre o processo e a falta de uma proposta clara, provavelmente não criaram a reação desejada.

O que é interessante nesta breve recapitulação sobre alguns fatos da vida de Nicéphore Niépce, é destacar como ele encarnava todas as ambiguidades de seu tempo. Ele, como burguês, definiu-se como um empreendedor destinado a ganhar dinheiro. Porém, uma vida de negócios era algo que ele realmente não poderia suportar, isso seria muito mundano para alguém refinado e cultivado como ele era. A carreira militar, a mais enraizada de todas as vocações aristocráticas, também não era o seu talento. Tornar-se um diletante vivendo no isolamento foi então sua escolha. Isso iria mantê-lo longe das universidades, longe da corte e longe dos centros de negócios, longe de todos os tipos de ambientes competitivos, bem de acordo com sua aversão à vida social. Sua escolha era para uma busca solitária, semi-científica, de novas tecnologias, que nunca seriam desenvolvidas completamente – a essa busca ele dedicou sua vida. Descobrimos em Nicéphore Niépce, muito mais um homem do Romantismo que do Iluminismo.

Chambre de la Découverte – Câmera da descoberta (Museu Nicéphore Niépce)

A ideia de fotografia

Niépce se sentiu atraído pelo assunto das imagens quando aprendeu sobre a litografia. O processo havia sido recentemente inventado e em 1810 o primeiro tratado sobre o tema foi publicado em Stuttgart. Isso provocou uma rápida disseminação por toda a Europa. Georges Potonniée, em sua Histoire de la Découverte de la Photographie (p.84) dá um certo ar de modismo elegante  à novidade: “em 1813, as pessoas cultivadas estavam fazendo litografias, Niépce, como as outras. E essa descoberta, que ele viu como maravilhosa, causou-lhe uma profunda impressão”. Interessado como ele era sobre processos industriais, Niépce estabeleceu o problema de chegar a um desenho feito espontaneamente por “forças naturais”. Esse foi o motor e a primeira concepção de seu projeto.

Um sucesso preliminar foi alcançado utilizando um revestimento de betume da Judéia sobre uma placa de metal como superfície sensível à luz . O processo assemelhava-se à gravura por água-forte. Os artistas costumavam cobrir placas de cobre com betume e a seguir raspavam-nas com um instrumento afiado, o buril, expondo linhas e padrões no metal. Em seguida, eles usavam um ácido que comia o metal e gravava o desenho. O último passo era a remoção do betume, aplicação de tinta de impressão sobre placa, a qual se acumulava nos sulcos corroídos pelo ácido, e estampagem final sobre papel, reproduzindo dessa forma o desenho.

A ideia de Niépce foi modificar este processo observando que o betume torna-se menos solúvel após a ação da luz. Em vez de arranhar, ele colocou gravuras impressas em papel sobre o revestimento de betume e os expos à luz solar. O papel branco era tornado transparente através da aplicação de ceras e óleos. A parte impressa funcionava como uma barreira para a luz. Em seguida, ele lavou as partes não expostas que ainda eram solúveis e o betume permanecia como o desenho gravado pela luz. O resto do processo consistia em aplicar o ácido, que iria corroer as partes escuras, não expostas do desenho original, e usar a placa metálica como matriz para impressão de gravuras. Ele chamou esse processo de Heliografia.

À esquerda, vemos uma amostra bem preservada dessa fase, exposta no Museu Nicéphore Niépce. Isso é de 1826, feito sobre uma placa de estanho, e representa o Cardeal Georges d’Amboise. Ao alto temos a gravura em papel feito transparente e retroiluminado, no meio temos a placa de metal e na parte inferior uma impressão final. Niépce enviou a placa para ser impressa em Paris pelo renomado gravador Lemaître. Este precisou reforçar os sulcos pois a ação do ácido não fora suficiente para retenção da tinta de impressão.

Se Niépce fosse um empresário de fato, querendo fazer dinheiro, teria percebido a excelente oportunidade que a reprodução foto-mecânica de imagens representava para um novo negócio. Ele teria então lançado no mercado o que já havia conseguido em 1826. Mas a luz filtrada por um desenho feito à mão não era a luz que ele tinha em mente. Então ele seguiu sem trégua para o próximo passo, que seria sobre como gravar a imagem da  câmera escura.

Inscrição: “Câmera escura que serviu a M. Niépce para seus primeiros experimentos. Os buracos, fechados com rolhas, permitiam-lhe inspecionar o progresso da operação”.

Acima, uma das câmeras escuras usadas por Niépce. Ele esperava uma espécie de efeito de impressão direta (não havia o conceito de revelador para uma imagem latente) e então perfurava dois buracos, normalmente fechados com rolhas, para permitir uma observação em tempo real do desenvolvimento da imagem. Ele usou uma lente de tipo Wollaston que era um simples menisco oferecendo f11 ou f16, o que significa uma imagem muito escura. Seu primeiro sucesso, ainda existente, na captura de uma imagem com uma câmera escura é a imagem abaixo, uma vista de sua janela, a fotografia data de 1827 e exigiu uma exposição de 12 horas.

Gras à Saint-Loup de Varennes de Nicéphore Niépce – 1827 – Universidade de Austin – Texas – EUA.

Niépce sabia que esse tempo de exposição não era praticável e então decidiu pesquisar outras substâncias sensíveis à luz para substituir o betume. O problema não era sobre como obter uma imagem, mas sim como fixa-la, como remover as partes que não eram expostas. As amostras com outras substâncias sensíveis já conhecidas, como os sais de prata, mostravam uma imagem tão logo removidas da câmera, mas as sombras continuavam a escurecer devido à ação da luz ambiente.

Lente tipo Wollaston – 1804 – a direção da luz é da esquerda para a direita

Na verdade, a invenção da fotografia foi muito a invenção de meios para fixar a imagem fotográfica. O princípio de usar uma imagem formada por uma lente e uma superfície sensibilizada à luz era conhecido de longa data. Difícil de rastrear o primeiro a experimentar o efeito. O inglês Thomas Wedgwood (1771-1805) já em 1802 havia realizado testes nesse sentido, porém, “as imagens formadas por meio de uma câmera escura foram muito fracas para produzir, em qualquer tempo moderado, um efeito sobre o nitrato de prata. Copiar essas imagens foi o primeiro objeto do Sr. Wedgwood em suas pesquisas sobre o assunto, e para este propósito ele usou pela primeira vez o nitrato de prata, que lhe foi mencionado por um amigo, como uma substância muito sensível à influência da luz, mas todas as suas numerosas experiências quanto ao seu objetivo final não foram bem sucedidas”(Eder p137). Ainda assim, o que Wedgwood estava fazendo pode muito bem ser chamado de fotografia. O que ainda faltava em suas experiências era algo para aumentar a sensibilidade ao nitrato de prata e depois um fixador.

Enquanto isso no Brasil

Imagem fotográfica produzida por contato por Hercule Florence em (1833) – coleção particular – Brasil

Hercule Florence foi outro precursor. Francês de Nice, nascido em 1804, estudou artes e aos 20 anos mudou-se para o Brasil onde se instalou como desenhista no Rio de Janeiro. Mais tarde, ele se casou e mudou para São Carlos no estado de São Paulo, onde começou sua pesquisa sobre a impressão pela ação da luz. Em 1833 ele conseguiu obter imagens fotográficas usando uma câmera escura. Não há imagem preservada atestando seus resultados, mas seus registros escritos são bastante convincentes. Ele usava placas de vidro cobertas com goma arábica e cinzas, o componente sensível era cloreto de prata ou ouro e as imagens eram fixadas com hidróxido de amônia. Infelizmente, ele estava em uma colônia não em uma metrópole e suas descobertas nunca deixaram seus próprios arredores. Ele permaneceu usando uma das invenções mais importantes do século para copiar etiquetas de vidro e documentos como diplomas maçônicos. A imagem acima é uma amostra preservada do último. Boris Kossoy (1941) é um fotógrafo e pesquisador com várias obras sobre Hercule Florence. Ele termina uma de suas palestras, publicada em Les Multiples Inventions de la Photographie, com uma citação interessante dos escritos de Hercule Florence: “Em um século que recompensa os talentosos, a Providência me levou a um país onde ninguém se importa com isso. Eu sofro os horrores da miséria, quando minha imaginação é cheia de descobertas. Ninguém me ouve e nem me entende. Nada importa aqui, exceto o ouro, a política, o comércio, o açúcar, o café e a carne humana. Sem dúvida, conheço algumas almas grandes e bonitas, mas em número muito pequeno, não conhecem meu idioma e eu respeito sua ignorância “.

Contato com Daguerre

Voltando a Niépce, ele experimentou com muitas substâncias diferentes, particularmente ele teve uma grande esperança sobre o uso do fósforo, mas nunca obteve resultado algum. Se pensarmos em combinações de suportes como estanho, cobre, lata, prata … substâncias sensíveis à luz como betume, fósforo, iodo, em revelação ou diluição com diferentes óleos, ácidos, ou o que for, além de diferentes tempos e concentrações, para todos esses processos, nós podemos inferir que Niépce empregou milhares e milhares de horas em suas experiências na base de erros e acertos. Não havia uma base teórica. Ele não era um cientista de fato.

No final dos anos vinte, ele estava convencido de que a qualidade das imagens produzidas por sua câmera escura era um problema. Em 1826, ele pediu a seu primo, que estava indo para Paris, para lhe trazer várias lentes de Vincent e Charles Chevalier, reconhecidos ópticos naqueles tempos (Fouque p117).  Foi assim que Charles Chevalier conheceu a natureza e os resultados das pesquisas realizadas por Niépce, e parece que foi Charles Chevalier que estabeleceu contato entre Niépce e Louis Daguerre.

Imagens impressas sobre metal , por contato, gravadas a ácido, usando o processo Heliográfico inventado por Niépce. São datados de 1823 a 1828

Daguerre era um artista, pintor e empresário trabalhando em uma espécie de negócio de entretenimento, o Diorama, que era um grande sucesso em Paris. Ele se aproximou de Niépce, que correu buscar referências sobre ele com o gravador Lamaître (carta de jan/1827 – Fouque p126 ): “Você conhece um dos inventores do Diorama, este Sr. Daguerre? O motivo pelo qual eu estou perguntando é que este cavalheiro, informado, não sei muito bem como, sobre o assunto da minha pesquisa, me escreveu no ano passado, em janeiro, para me informar que, desde há muito tempo, ele estava pesquisando o mesmo que eu e me perguntou se eu teria sido mais feliz do que ele em meus resultados. No entanto, segundo ele, ele já havia obtido algo de  muito impressionante e, além disso, me pediu para lhe dizer, antes de tudo, se eu considerava a ideia toda possível. Não vou esconder, senhor, que tal inconsistência de idéias, teve o efeito de muito me surpreender, para dizer o mínimo “.

O encontro e a cooperação de Niépce e Daguerre foram comprometidos desde o início pelo enorme segredo que cada um mantinha sobre o status real de suas pesquisas. Cada um superestimou o nível de conhecimento e desenvolvimento que o outro aparentemente tinha sobre o assunto. Daguerre acreditava que Niépce já teria algo muito mais eficaz do que as impressões em betume e Niépce, por sua vez, acreditava que Daguerre seria capaz de fornecer uma câmera mágica, com óptica maravilhosa, capaz de compensar todas as desvantagens de sensibilidade que seu processo ainda apresentava. De qualquer forma, eles assinaram um contrato em 1829 e, nessa condição, tiveram que compartilhar o que de fato dispunham.

Foi uma decepção recíproca. Porém, para ser justo, deve-se dizer que Niépce tinha de fato algo com seu processo heliográfico, enquanto Daguerre não acrescentou nada que Niépce não conseguiria obter de ópticos como Charles Chevalier ou outros. Eder diz isso claramente: “É digno de notar que a Niepce conheceu Daguerre trazendo sua invenção que era realmente nova, mas que Daguerre não teve nenhuma contribuição fotográfica importante para oferecer” (Eder p223).

Esta câmera, exibida no museu, foi dada a Niépce por Daguerre como parte do acordo de cooperação.

Os termos do acordo, no contrato de parceria entre Daguerre e Niépce, afirmam claramente que a Heliografia já era “a” descoberta, que precisava apenas de melhorias, e que caberia a Daguerre trazer essas melhorias. Lemos: “M. Daguerre, a quem ele [Niépce] divulgou sua invenção, percebendo plenamente o seu valor, uma vez que a invenção é passível de receber grandes aperfeiçoamentos, oferece-se para se juntar a M. Niepce para alcançar essa perfeição e obter todas as vantagens possíveis dessa nova indústria “. Existe uma tradução completa para o inglês desse acordo em Eder (p215). O original é reproduzido por Fouquet (p161).

Morte de Niépce

Nicéphore Niépce retrato póstumo pintado em 1854 pelo artista francês Léonard François Berger

Niépce morreu em 1833 com 68 anos e seu filho Isidore assumiu sua parte no contrato (Daguerre tinha então 46 anos). Mas outros desenvolvimentos foram conduzidos por Daguerre e, como sabemos, seu nome sozinho seria o primariamente laureado com a glória pela descoberta da fotografia. O processo que acabou por ter seu nome, em vez de Niépce-Daguerre, como foi o acordo inicial, sempre foi bastante referido como um caso de usurpação. Isidore, filho de Nicéphore, escreveu um pequeno livro  “Post tenebras lux. Historique de la découverte improprement nommée Daguerréotype” (p47)  (Depois das trevas a luz. Histórico da descoberta impropriamente chamada daguerreótipo) no qual, entre muitas outras considerações, ele traz uma cláusula específica no contrato de seu pai e que diz o seguinte: “no caso de morte de um dos associados, a descoberta mencionada nunca será anunciada sem ter os dois nomes designados no primeiro artigo”. Isso é bastante claro e forte, mas, Daguerre também tinha seus argumentos. O fato é que sua técnica usando placas de prata sensibilizadas pelo iodo e com uma imagem latente revelada pelo mercúrio era algo realmente diferente do que Niépce havia chegado. Também é verdade que Daguerre insistiu que Niépce deveria tentar o iodo e este, depois vários testes, respondeu de volta dizendo que ele havia desistido completamente dessa substância. Em uma carta de 8/novembro/1831 a Daguerre, Niépce diz: “Eu fiz um grande número de experimentos com iodo em combinação com placas prateadas, sem obter em nenhum momento os resultados que o meio de desoxidação teria me levado a esperar. Não obstante todas as mudanças às quais sujeitei o procedimento e todas as várias combinações de diferentes métodos de testes, meu sucesso não foi mais afortunado. […] Depois de alguns outros julgamentos, permaneci neste ponto, e devo confessar que estou extremamente arrependido ter perseguido há tanto tempo uma direção errada, e o que é pior, sem qualquer proveito … ” (Eder p.225)

Então Daguerre perseverou em um caminho que Niépce havia abandonado. Mais tarde ele considerou que a descoberta como apenas dele e assim forçou para convencer Isidore a assinar um adendo ao contrato provisório de 1829 alterando o nome da associação, estabelecendo-se como o primeiro. Isso foi em 1835. Mais tarde, em janeiro de 1837, Daguerre, mais assertivo, pressionou novamente Isidore a assinar um contrato definitivo, preparando o anúncio da descoberta e a estratégia comercial para finalmente explorar a invenção. A proposição de Daguerre foi uma divisão: anunciar o que Niépce fez, a Heliografia como de Niépce apenas e o novo procedimento seria chamado daguerreótipo. O próprio Isidore explica a maneira como Daguerre colocou a situação e porque cedeu: “Irritado pela minha constante recusa, ele declarou que, se eu não concordasse com seu pedido, ele manteria sua técnica apenas para si [Isidore havia visto daguerreótipos e ficou, como qualquer pessoa ficaria, muito impressionado]. Então iríamos publicar apenas o processo de M. Niepce, e mais tarde ele publicaria o seu próprio, o que me impediria de tirar mesmo a menor vantagem da descoberta do meu pai. Eu observei que tal ação era contrária aos direitos estipulados no ato de associação: ele respondeu que seu procedimento não tinha nada em comum com o de meu pai e que ele era livre para mantê-lo em segredo! “. (Isidore Niépce)


(pausa técnica)

Como era um Daguerreótipo

Realizado sobre uma placa metálica recoberta de prata pura, o fundo da imagem era a própria prata polida que fazia as vezes das sombras desde que estivesse refletindo uma área escura atrás do observador. As altas luzes eram o depósito de micropartículas que correspondiam à parte luminosa da imagem. Os tamanhos, com raras excessões eram muito pequenos, como a palma da mão, e precisavam ser selados com vidro para evitar a degradação da imagem por reações com intempéries. Normalmente eram acondicionados em pequenos estojos ornamentados semelhantes ao que já se usava nos retratos pintados em miniaturas.

Acima, um daguerreótipo onde figura o próprio Louis Daguerre. Esta reprodução foi realizada nas melhores condições possíveis de ângulo e iluminação e é por isso que temos uma gama tonal extensa. A superfície, quando examinada em condições normais é como algo impresso sobre um espelho onde os negros tem reflexão especular e as altas luzes reflexão difusa. Abaixo, um conjunto completo para realização de daguerreótipos incluindo a câmera e os recipientes para preparação e processamento das placas (fonte: foto do autor no George Eastman Museum).


Bem, Isidore assinou o novo contrato e juntos iniciaram um lançamento comercial através de um sistema de assinaturas pré-pagas. Foi um completo fracasso. O sucesso veio apenas em 1839, quando ajudado pelo entusiasmo de Dominique François Jean Arago (1786-1853), cientista e membro ativo da Academia Francesa de Ciências, o governo francês adquiriu os direitos sobre o daguerreótipo, sobre a Heliografia e ainda do Diorama. Todos os processos foram tornados públicos, gratuitos para qualquer pessoa e o Daguerreótipo se tornou um grande sucesso. Isidore e Daguerre foram contemplados com uma pensão vitalícia de 6000 francos anuais para Daguerre e 4000 para Isidore.

“Fotografia – Novo método empregado para se obter poses graciosas” – Museum Nicéphore Niépce

Por que fotografia?

O valor de entrar em tais detalhes, ler cartas pessoais, contratos, imprensa, documentos científicos e assim por diante, não é sobre os aspectos novelísticos em que essa história evoluiu, como certamente foi o caso. Não se trata também de descobrir quem foi de fato o pioneiro da fotografia. O que é intrigante  para se pesquisar é o fato de que tantos pioneiros trabalharam em segredo, simultaneamente, no mesmo assunto em lugares tão distantes quanto Brasil e França.

Produção de imagens nunca foi algo como a indústria da guerra, na qual, infelizmente a humanidade sempre buscou aperfeiçoamentos constantes. Ao contrário, imagens frequentemente não despertaram interesse algum e em outros casos foram mesmo proibidas ao longo da história. Quando imagens começaram a se tornar importantes em nossa cultura ela foi deixada a cargo de artesãos e artistas em processos manuais. Parece que não havia interesse algum por um processo como a fotografia até o século XIX e, de repente, tornou-se uma necessidade. Um frenesi foi instalado sobre quem seria o primeiro a descobrir uma maneira adequada de renderizar imagens da câmera escura em uma mídia permanente. É costume se dizer, sobre a resolução de problemas, que o truque não é encontrar as respostas, mas sim colocar as perguntas certas. A fotografia é uma excessão a essa regra, pois todos estavam bem conscientes do que procuravam, de qual era a pergunta. O esforço todo foi no sentido de se encontrar a resposta.

Seria o século XIX mal servido em termos de imagens? Haveria lacunas na oferta de imagens a serem preenchidas? Isso é questionável em muitos sentidos. Hoje, quase ninguém mais sabe desenhar e o desenhar, para representar algo, ocupa um segundo lugar distante atrás da fotografia. Mesmo os artistas visuais contemporâneos muitas vezes não conseguem desenhar. Mas nos séculos XVIII ou XIX, o desenho era algo comum. As pessoas educadas aprendiam o básico e o usavam para tomar notas visuais, como tiramos fotos com nossos celulares. O mesmo acontecia com a música, tocar instrumentos musicais era tão comum como hoje cantar no chuveiro. Esses eram talentos que costumavam fazer parte de uma boa formação e evidenciavam refinamento.

Jean-Auguste-Dominique Ingres – portrait of Etienne Gonin

Saindo do âmbito dos artistas amadores, todas as imagens profissionais eram feitas à mão. Isso exigia milhares de pintores, desenhistas, gravadores, coloristas, miniaturistas e toda uma indústria, incluindo o sistema educacional, para forma-los. No momento em que a fotografia foi criada, ser artista, era uma profissão regular principalmente abraçada por jovens de famílias de média para baixa renda. O caminho e seus marcos eram muito claros. No caso da França, começava por ser admitido em um ateliê público ou privado como aluno e/ou em uma École de Beaux Arts – composta também por ateliês dirigidos por artistas confirmados. Aqueles que vinham do interior normalmente passavam primeiro por cursos de desenho em escolas municipais, oferecidos gratuitamente, antes ou depois do horário de trabalho em cursos matutinos ou noturnos. A maioria dos artistas tinha um segundo emprego para proporcionar-lhes uma renda regular e confiável que eles não podiam garantir como artistas. No nível mais alto, alguém se tornaria pintor de história e receberia comissões oficiais para grandes telas. Isso certamente criaria oportunidades para vender retratos a aristocratas e alta burguesia.

Anne Martin-Fugier, em seu livro “La vie d’artiste au XIXe siècle, dá uma visão do que o sucesso significava: “Um retratista confirmado poderia ganhar muito dinheiro. Por volta de 1845, um retrato pintado por um artista de boa reputação (Alexis-Joseph Pégignon, Henri Scheffer ou Sébastien Cornu) renderia 1500 francos e um retrato pintado por uma estrela como Horace Vernet ou Court, 3000 francos, isso significa mais do que a renda anual de uma família pequeno-burguês “. Ao mesmo tempo, Martin-Fugier comenta também que a esposa de Ingres relatou certa vez, falando a jovens artistas, que durante sua permanência em Florença, Ingres (ele tinha cerca de trinta anos) desenhou uma série de retratos para a família Gonin ao preço de 25 francos cada. Outro dado interessante é que, após o Salão de 1845, das 2079 obras de arte entre pinturas, desenhos e miniaturas, que estavam em exibição, 700 retratos foram para aquisições privadas, 250 comprados pelo estado sendo 150 para Versalhes. Os demais foram devolvidos aos artistas ou vendidos por 10 a 12 francos cada um e exportados para a Rússia, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.

Miniature – William Grimaldi – 1793

Preço e oferta não eram uma barreira para aqueles que queriam possuir imagens para decoração ou imortalizar suas figuras. Havia preços e artistas para todos os orçamentos. O Prêmio de Roma, foi uma bolsa de estudos de 4 anos que foi por muito tempo o bilhete de entrada para uma carreira bem sucedida. Porém, entre os milhares de estudantes sonhando e concorrendo a este cobiçado prêmio , apenas um punhado teria essa oportunidade. Em meio àqueles que não o conseguiam, muitos eram talentosos o suficiente para pintar ou desenhar retratos e se estabeleciam nesse negócio. Havia até uma categoria de retratos chamados de “miniaturas” que antes eram inicialmente reservados à aristocracia e à alta burguesia, e depois da Revolução Francesa, os artistas que perderam parte significativa de sua clientela, que fugiu ou foi para a guilhotina, passaram a oferecer melhores preços e as miniaturas entraram em um estrato social mais apertado financeiramente. Essas são pequenas pinturas, normalmente aquarela e gouache sobre marfim, com tamanho de cerca de 5 x 7 cm, preservadas em molduras de metal ou em pequenas caixas. Os daguerreótipos põem fim às miniaturas. No que diz respeito ao seu uso, ambos abordam a mesma necessidade de oferecer uma imagem fiel de si ou de uma pessoa querida. Os tamanhos, a postura, o enquadramento e a coloração manual dos daguerreótipos, além das dificuldades na produção de grandes placas, certamente tinham sua ancestralidade nas miniaturas.

Honoré Daumier – lithograph from 1872

Se considerarmos agora as técnicas de impressão, voltadas para grandes quantidades, temos várias opções apresentadas principalmente a partir do final da Idade Média. Xilogravura (~ 1400), Gravura em metal com buril (~ 1430), Gravura em metal com mordente (~ 1530), Aquatinta (1650), Mezzotint (~ 1670), Litografia (1796) (essas datas foram coletadas de Met Museum website). Os assuntos eram principalmente figuras importantes de seu tempo, eventos históricos, gênero ou naturezas mortas, muitas vezes trazendo um fundo moral, e milhares de cópias de obras de arte. As gravuras eram extremamente importantes como mídia de difusão para obras de arte e também eram uma maneira de possuir uma referência de um mestre por um preço baixo. Mezzotints eram adequados e muito populares para cópias de pinturas a óleo. Ao entrar no século XIX, vemos a expansão da  imprensa em jornais, revistas e outros periódicos, que começaram a abrir novos caminhos e a configurar o que seria uma imagem de mídia de massa em todas as suas variantes, como a caricatura e o humor, que eram muito solicitados. Com técnicas que poderiam produzir milhares de impressões da mesma matriz (litografia, por exemplo), imagens impressas tornaram-se onipresentes.

Pensando agora a fotografia apenas do ponto de vista de suas virtudes e falhas, pode parecer estranho o lugar notório que quase instantaneamente conquistou. Deveria ser apenas mais um método entre outros devido às suas limitações em tamanhos, falta de reprodutibilidade dos daguerreótipos ou séries muito pequenas em processos negativo/positivo, sem cores e com procedimentos complexos e caros em comparação com desenho e pintura. No lado das vantagens, podemos contar que era muito detalhado e rápido para produzir. Vamos voltar a isso logo abaixo. Mas o sucesso foi tremendo, por exemplo, no prefácio de Traité de Photographie, quarta edição de junho de 1843, Lerebours (fabricante de lentes e aparelhagem para daguerreótipos e também ele próprio importante fotógrafo) diz que todas as 1800 unidades da edição anterior foram vendidas em apenas dois meses.

Theodore Maurisset – litografia Daguerreotypomanie – clique para ver em tamanho grande

A daguerreotypomanie tornou-se o assunto da cidade, em todas as cidades e, embora apenas o equipamento básico custasse cerca de 400 francos na França, muitos estúdios fotográficos foram abertos da noite para o dia e um movimento de fotógrafos itinerantes começou a se espalhar para todos os cantos da Europa e também dos Estados Unidos . No Le Nouveliste de 25 de agosto de 1853, o jornalista, visivelmente irritado, fala sobre a moda da nova técnica: “A realização do daguerreótipo não requer inteligência, nem espírito, nem arte, nem estudos, nem trabalho, nem investimento, Paris é invadida por pintores de daguerreótipo. Nós os contamos por centenas. O daguerreótipo encerrou a tradição das miniaturas, e mais de um miniaturista talentoso foi forçado a jogar fora sua paleta para praticar o daguerreótipo, um horror. Agora que todos podem ter sua semelhança por cinco, três e até dois francos, o retrato a óleo caiu no esquecimento “.

Longe das grandes cidades, o daguerreótipo teve que enfrentar uma clientela não tão entusiasmada ou propensa a ver os valores intangíveis sobre os quais uma nova moda normalmente se apoia. É interessante o testemunho de John Werge, ele mesmo um daguerreotipista, sobre a chegada de um fotógrafo itinerante a sua cidade quando ele era ainda adolescente: “Algum tempo depois disso [refere-se à primeira vez que ele viu um daguerreótipo na vitrine da agência do Correio] Uma Miss Wigley, de Londres, chegou à cidade para praticar a Daguerreotipia, mas ela não permaneceu muito e não conseguiu, penso eu, ter feito uma visita rentável. O contrário, dificilmente poderia ser imaginado, pois as imagens desse período, feitas ao sol, com reflexos ofuscantes e distorções do rosto humano, impressionariam poucas pessoas a respeito do processo ou da mais nova maravilha do mundo. Naquele período inicial de fotografia, as placas eram tão insensíveis, as sessões muito longas e as condições terríveis. Não era fácil convencer alguém a submeter-se à provação de sentar-se ou pagar a soma de vinte e um xelins por um retrato muito pequeno e insatisfatório”.(The evolution of photography – 1890 – John Werge p31)

Vale a pena perguntarmo-nos por que os daguerreótipos ganharam tal popularidade mesmo antes que algumas melhorias muito básicas fossem implementadas, sendo provavelmente a sensibilidade à luz a mais importante delas. A explicação à mão é dizer que forneceu uma imagem fiel, realmente idêntica à pessoa fotografada como nenhum outro meio poderia fazer. Isso é possivelmente verdade. Ao mesmo tempo, a semelhança nem sempre é uma boa estratégia no retrato. “O inimigo mais terrível com o qual o daguerreótipo teve que lidar é, sem dúvida, a vaidade humana. Quando alguém é retratado pelos meios tradicionais, a mão obediente de um artista sabe suavizar os traços um tanto severos da fisionomia, para melhorar a atitude e a rigidez, dando-lhe graça e dignidade. Não é assim com o artista fotográfico, incapaz de corrigir as imperfeições da natureza, seus retratos têm, infelizmente, a culpa de serem muito parecidos, são, em certo sentido, espelhos permanentes em que a auto-estima nem sempre encontra seu consolo”.  J.Thierry em Daguerreotypie de 1847 (p.137).

Mesmo admitindo que a semelhança tenha sido a chave do enorme sucesso do daguerreótipo, ou do sucesso da fotografia como um todo, devemos ter cuidado. Verossimilhança é um conceito muito complicado. Eu concordo com aqueles que defendem a verossimilhança da fotografia como seu principal fator de sucesso, desde que tomemos essa verossimilhança como algo contaminado pelo subjetivismo, ambiente cultural e convenções. Então, podemos dizer sim, embora a semelhança não seja algo objetivo, definível, e sim bastante questionável, provavelmente é verdade que as pessoas no século XIX consideraram daguerreótipos fidelíssimas representações dos retratados, algo mais do que um pintor realista, como Courbet, ou um classicista, como Ingres, poderiam alcançar nessa direção.

Auguste Dominique Ingres – Comtesse d’Haussonville – 1845

A longa discussão, da qual o conflito entre Classicismo e Realismo é apenas uma entre muitas outras instâncias, em torno do que se entende por “real” – é o imanente mais real do que o transcendente? Essa é uma questão cuja solução não é tão óbvia quando possa parecer. Uma vez que concordemos com isso, a próxima questão torna-se automaticamente: por que eles acreditavam que a fotografia apresentava imagens verossímeis como nenhuma outra técnica ou artista poderia fazer? Proponho que esta seja a questão certa a ser investigada.

Mas antes de abordar esse ponto crucial, pode ser um exercício valioso lembrar como a realidade, que podemos assumir como sendo única, sempre teve renderizações múltiplas, todas elas muito verdadeiras para seus espectadores contemporâneos. Toda cultura que adotou a busca do realismo como objetivo, alcançou-o para sua completa satisfação. Giotto di Bondone (1266/7 – 1337), pintor dos afrescos na Capela da Arena em Pádua, teve seus santos e outras figuras consideradas por seus contemporâneos tão realistas quanto pessoas vivas.

Mesmo olhando para os mais de 170 anos de história oficial da fotografia, sabemos que os daguerreótipos foram considerados imagens fieis, representações perfeitas de seus retratados ou paisagens. Dificilmente podemos compartilhar a mesma opinião hoje. Quando o filme em cores se tornou um produto popular, nossos antepassados se acostumaram a uma maneira específica de representar a realidade segundo aquilo que as fotos mostravam e que parecia verdadeiro para eles. Era algo como a foto acima, de um anúncio da Kodak na U.S.Camera de 1951, que para nós é absolutamente datada, chapada e precisaria de muitas correções  em relação à verossimilhança. Talvez, sobre a imagem abaixo, publicidade contemporânea da Canon, podemos finalmente dizer que agora sim, agora nós conseguimos! Isso é absolutamente como a realidade.

Esse problema, de se entender o que pode ou não funcionar como uma representação fiel, envolve em parte psicologia da percepção e em parte filosofia da linguagem. É a questão central no clássico Art and Illusion, De Ernst Gombrich. O conceito chave que ele desenvolve é que a semelhança é algo que, dentro de limites muito flexíveis, não reconhecemos apenas com nossos olhos, primeiro aprendemos e depois o reconhecemos com nossas mentes.

É o método e não a imagem em si que legitima a verossimilhança da fotografia

As pessoas que olhavam para as primeiras fotografias não estavam verificando a fidelidade das imagens contra sua impressão visual real. Elas estavam aprendendo como uma imagem fiel deveria ser. Seja qual for o resultado que uma fotografia apresentasse, não importa quão grosseiro, quão sem vida, quão comprimido em escala tonal, quão longe do mundo real colorido, eles chamariam isso de uma verdadeira representação da realidade. A fotografia, uma concepção do século XIX, nasceu para ser, por definição, por conceito, uma representação fiel do mundo que nos cerca. É o método e não a imagem em si que legitima a verossimilhança da fotografia.

Não sabiam ou não queriam?

Xilogravura de Albrecht Dürer, circa 1525 – desenhista usando uma tela quadriculada para realizar um desenho perfeito

Um aspecto ao qual vários historiadores chamaram a atenção no desenvolvimento da fotografia é sobre o atraso entre a descoberta de seus princípios básicos e sua invenção final como um processo de criação de imagens. Sobre isso, vale a pena uma longa citação de John Werge em seu The evolution of Photography publicado em 1890: “Mais de trezentos anos se passaram desde que a influência e o actinismo da luz sobre o cloreto de prata foram observados pelos alquimistas do século XVI [1556, de acordo com Robertu Hunt, p5]. Esta descoberta foi, sem dúvida, a primeira coisa que sugeriu às mentes dos químicos e dos homens da ciência, a possibilidade de obter imagens de corpos sólidos em uma superfície plana previamente revestida com um sal de prata por meio dos raios do sol, mas os alquimistas estavam muito absorvidos em seus inúteis esforços para converter metais básicos em preciosos para aproveitarem a pista e assim perderam a oportunidade de transformar os compostos de prata com os quais eles estavam familiarizados na mina de riqueza que eventualmente se tornou no século XIX. Curiosamente, uma invenção mecânica do mesmo período foi depois empregada, com uma modificação muito insignificante, para a produção das primeiras imagens fotográficas. Esta era a câmera obscura inventada por Roger Bacon em 1297, e melhorada por um médico em Pádua, Giovanni Baptista Porta, em cerca de 1500, e depois remodelado por Sir Isaac Newton “. De fato, a transformação fotoquímica do cloreto de prata e a câmera escura eram conhecidas desde o século XVI. Aparentemente, a ninguém ocorreu combinar os dois e criar fotografia quase 300 anos antes de Niépce e seus contemporâneos.

O ponto é que mesmo para as tecnologias, é preciso mais do que o conhecimento para materializá-las em descobertas significativas e novos hábitos. O nascimento da fotografia dependia de lentes e processos químicos, mas também dependia de uma nova atitude em relação à natureza. Esta foi a transformação operada pelo Iluminismo que trouxe consigo a Ciência Moderna. Na nova visão a natureza, ainda que considerada como a obra divina, perdeu o seu mistério, deixou de ser um campo de manifestação de um Deus caprichoso e operante, fechada a qualquer inspeção ou previsibilidade, mas, em vez disso, como algo apenas material, apenas existente, governado por leis fixas e acessíveis. Esse desencantamento foi um longo e doloroso processo, iniciado em algum lugar da Idade Média e que nunca se realizou completamente.

É muito difícil para nós hoje, mesmo para os religiosos, imaginarmos a relação e interpretação que nossos antepassados davam aos fenômenos naturais, ou às coisas mais banais que observavam no dia a dia. A ilustração acima é de um livro chamado Wahres Christentum (Cristianismo Verdadeiro), escrito pelo muito influente teólogo protestante chamado Johan Arndt (1555 – 1621). No capítulo II ele fala da queda e apostasia de Adão e sobre como todos herdamos pelo sangue a sua essência maligna. Nos convida a observar como já em um recém nascido, sim, em um bebezinho, essa natureza corrupta se revela em vontade própria e desobediência, testemunhos da raiz tenebrosa de onde ele vem: do pecado. Nesse mesmo capítulo ele resolve usar justo a Camara Obscura como exemplo de uma típica manifestação do mal. Descreve-a nos seguintes termos. “Aqui é mostrada a chamada Camara Obscura, que é quando em uma sala completamente vedada, exceto por um buraco, um certo vidro é colocado em frente a esse buraco. Então acontece que as pessoas que passam na rua podem ser vistas nesta sala. Mas de tal maneira que caminham de ponta-cabeça. Isso indica que o ser humano, infelizmente, na escuridão completa, de coração e mente, caiu no pecado, transformou-se de fato em uma imagem pervertida, da imagem de Deus em uma imagem do demônio”.

Em um mundo onde tudo era encantado, tudo era manifestação de uma vontade divina inescrutável, um mundo onde tudo poderia acontecer sem nenhuma previsibilidade, o fato de que ao cruzar a lente da Camara Obscura os raios de luz vindos de baixo iriam obviamente se projetar na parte de cima da imagem, mostrando as pessoas de ponta cabeça, o fato de que isso era mais do que lógico, natural, observável, sem nenhuma implicação ou importância moral ou religiosa… isso não era sequer cogitado. Em primeiro lugar, tudo tinha uma implicação simbólica de ordem religiosa. O nosso reflexo, hoje tão natural, de investigar e entender ainda não existia. Mais que isso, pensamentos assim eram logo vistos como ameaça à ordem das coisa e quem mostrasse inclinação a este tipo de análise corria o risco de ser perseguido e ter sérios problemas com as autoridades seculares e religiosas.

Por mais que os artistas renascentistas estivessem envolvidos em buscar uma representação naturalista em suas imagens, não havia o menor clima para que algo como a fotografia fosse imaginado como possibilidade. O ato de pintar era um ato de devoção e a ideia não era ser fácil. O esforço e maestria do artista atestavam seu comprometimento com o sagrado. Registrar a imagem da Camara Obscura seria certamente um truque rasteiro, uma farsa ou um ato de bruxaria.

Talvez por tantos séculos desse desinteresse e desconfiança do que mais tarde viria a se chamar de investigação científica, notamos um certo tom de vingança nas formas como os pesquisadores descreviam seus objetivos ao pesquisar formas de registrar as imagens da câmeras escura. As metáforas que usavam, como qualquer boa metáfora, não funcionam como verdades literais, mas também não são totalmente privadas de sentido. Eles estavam claramente comemorando uma vitória: “Wedgwood foi trabalhar com o propósito de tornar o raio de sol seu escravo, alistar o sol ao serviço da arte e obrigar o sol a ilustrar a arte e retratar a natureza com mais fidelidade do que a arte já imitara qualquer coisa iluminada pelo sol.” Esta é a maneira como John Werge fala das pesquisas de Thomas Wedgwood. Importante lembrar também que “luz” carrega uma herança pesada como símbolo da presença e manifestação divina: “E disse Deus, que haja luz, e a luz se fez” (Genesis 1:3)

Em 1862, Arthur Chevalier escreveu sobre as realizações de seu pai e relata um pouco da relação dele com Daguerre no livro Charles Chevalier. Ele descreve a frustração de Daguerre nos seguintes termos: “Depois de ter obtido a imagem, ele não conseguia conserva-la, enquanto contemplava sua cativa, ela se desvanecia, voltando à fonte da qual havia emanado”, criada pela luz e destruída pela luz, a imagem era descrita como um “cativa”, como alvo de uma captura.

A ciência trazida pela Modernidade era toda ela baseada na ideia de dominação sobre a natureza, sobre explicar todos os seus segredos e fazê-la funcionar para a riqueza e glória humanas. A concepção da natureza para os filósofos do Iluminismo era que o Universo seria como uma grande máquina que se movia sozinha e governada exclusivamente por suas próprias leis. Uma máquina maravilhosa, mas não para ser contemplada ou adorada, antes, para ser decifrada e explorada.

Em seu discurso importante e elucidativo perante a Academia de Ciências em Paris, François Arago inscreve fotografia entre descobertas científicas destinadas a inspecionar os segredos da natureza. Ele classificou a descoberta de Daguerre junto com o telescópio e o microscópio. Sobre o último, ele faz uma declaração muito iconoclasta e premonitória: “O microscópio posteriormente revelou no ar, na água, em todos os fluidos, estes animais, infusoria e reproduções estranhas, nas quais se espera um dia encontrar os primeiros germes de uma explicação racional dos fenômenos da vida “. Ele era ateu e também tinha muitos trabalhos especificamente sobre a luz. Apoiava a teoria ondulatória, pois era a abordagem mais materialista, e contribuiu de forma importante para a compreensão da polarização da luz e da determinação de sua velocidade. Colocar a luz para imprimir sozinha suas imagens deve ter lhe parecido um dos grandes feitos do século.

A idéia de descobrir as leis da natureza ia além do mundo físico. O programa era usar esse conhecimento para entender nossas próprias relações como seres humanos. Politicamente essa foi a pedra angular do edifício da Modernidade. Na natureza, haveria a lógica e os fundamentos para regular até a vida social e essa foi a chave para se livrar da tutela espiritual e política, ambas apoiadas pelo pensamento tradicional, baseado nas autoridades da igreja e da nobreza, ao invés da análise científica de fatos e observações. A fotografia foi apresentada como liberando imagens da intermediação de um artista. Os objetos desenhavam a si próprios da mesma maneira que as pessoas dirigiriam e decidiriam sobre suas vidas em uma democracia. Na base do acordo preliminar entre Niépce e Daguerre a fotografia é definida nos seguintes termos: “M. Niepce, em seu esforço para fixar as imagens que a natureza oferece, sem a ajuda de um artista, realizou investigações, os resultados das quais são apresentados por inúmeras provas que fundamentarão a invenção. Esta invenção consiste na reprodução automática da imagem recebida pela câmera obscura ” (Fouque p.162). O automatismo, a superfície que apresentava uma imagem sem ter sido tocada por ninguém em nenhum passo do processo, essa era a maravilha da fotografia.

Richad Buckley Litchfield  foi o biógrafo de Thomas Wedgwood. Na passagem a seguir, ele não esconde sua decepção com a falta de perspicácia de Humphrey Davy, químico competente e colaborador de Wedgwood em suas experiências com papel impregnado com sais de prata, por não ter percebido a importância que a fotografia poderia ter. Ele usa exatamente essa característica do novo processo para destacar sua qualidade mais importante: “Até esse momento, cada imagem produzida pelo homem tinha sido feita pela mão humana, guiada pelo olho humano. – Mas aqui estava uma foto , ou uma espécie de imagem, uma representação de um objeto, que surgiu pela ação espontânea das forças naturais, por uma mudança química produzida pela ação da luz “. O que Wedgwood e Davy não perceberam é como essa característica da fotografia estava sintonizada com o pensamento liberal que a cultura ocidental vinha assumindo. Devem ter avaliado a imagem em si mesma e desistiram, pois com certeza, não devia ser das melhores.

Henry Fox Talbot era um inglês que desenvolveu ao mesmo tempo que Daguerre um processo substancialmente diferente usando papel e o conceito negativo/positivo. Ele apresentou parcialmente sua descoberta à Royal Society em Londres em 31 de janeiro de 1839. Ele não divulgou todos os detalhes porque pretendia obter uma patente e ganhar dinheiro com o invento, como realmente o fez. Mais uma vez, a forma como ele apresentou sua invenção, a maneira como ele a descreve no título de sua exposição, sublinha a real força e atrativo do novo processo fotográfico. Foi publicado no Literary Gazette (Londres) nº 1153 (23 de fevereiro de 1839). Abaixo está o cabeçalho (tirado da excelente fonte on-line Midley History of early Photography – Derek Wood)

Alguns pontos sobre a Arte do Desenho Fotogênico, ou o Processo pelo qual Objetos Naturais podem ser colocados a delinear a si próprios sem a ajuda do Lápis de um Artista. Por Henry Fox Talbot, Esq F.R.S.

“… objetos colocados a delinear a si próprios sem a ajuda do Lápis de um Artista”, essa é a qualidade mais importante da fotografia, mais do que a sua capacidade real de traduzir fielmente uma impressão visual. Mais tarde, depois de algumas melhorias importantes em seu Calotype, Talbot publicou uma coleção de imagens que ele chamou de “Lápis da Natureza”. Isso também é o que Robert Hunt sublinhou em seu livro de 1844,  Researches on light in its chemical relations, na qual ele diz: “A Europa e o Novo Mundo ficaram maravilhados com o fato de que a luz poderia ser posta para delinear os corpos sólidos, belas imagens delicadas, geometricamente verdadeiras, dos objetos que ilumina”.

 

Camille Corot pintando d’après nature

Essa mudança no conceito de natureza com relação às imagens, impactou mesmo a pintura. Logo no Renascimento as paisagens que eram apenas pano de fundo para cenas bíblicas, mitológicas ou de batalha, começam a receber uma atenção especial quanto à verossimilhança. No século XIX, ao mesmo tempo que Niépce estava experimentando todo tipo de materiais “tentando  fixar as imagens que a natureza oferece”, pintores mais tarde conhecidos como École de Barbizon, entre eles Jean-Baptiste Camille Corot, Charles-François Daubigny, Jean-François Millet e Théodore Rousseau tentavam fixar as imagens que a natureza oferecia à sua maneira. Antes disso, pinturas de paisagens eram feitas com base em pinturas de paisagens anteriores e sempre em estúdio, nunca ao vivo. Mas isso começou a ser questionado, por exemplo, pelo pintor inglês John Constable (1776-1837), que interrogou por que o primeiro plano da paisagem deveria estar sempre em cores acastanhadas, por que não olhar as cores reais que a natureza oferece e pintá-las como elas são?

Ao mesmo tempo em que fotógrafos instalavam seus tripés e câmeras para um “Desenho Fotográfico”, os pintores estavam montando seus cavaletes e telas para pintar d’après nature. O posicionamento era o mesmo, mudavam os instrumentos. Os fotógrafos queriam se livrar da interpretação do artista, os artistas queriam se livrar de antigas fórmulas acadêmicas. Todos queriam se livrar de quaisquer restrições autoritárias. A natureza surgiu como o referencial universal, neutra, disponível, perene e onipresente. A natureza era a aposta para substituir as fontes tradicionais de orientação e conhecimento. Esse foi o projeto do Iluminismo e a fotografia não poderia ter nascido sem ele.

 

 


Este post apareceu originalmente dentro do review que fiz do Museu Nicéphore Niépce, publicado em 04 de julho de 2017. Mas por sua autonomia de leitura e reflexão, como análise da relação da invenção da fotografia com a Modernidade, preparei esta nova versão para uma leitura independente.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.