Fiz esse retrato com dry plate (placa seca) que preparei em um vidro 18 x 24 cm. Usei uma lente Petzval mais recente, uma Hermagis Nº5 para retratos, de 1909. O negativo empregado, 18×24 cm, é maior do que recomendava o catálogo do fabricante. É típica dessa óptica a nitidez implacável no eixo da lente e a perda da mesma nas bordas e isso se acentuou com o negativo maior. Para ganhar nitidez fora do centro da fotografia foi preciso mover a lente. Esse procedimento é explicado no artigo Usando uma lente Petzval para retratos. A impressão foi por contato, graças ao grande negativo, feita sobre um papel bem rústico e de tons quentes chamado Fomatone MG Classic.
Mas o problema maior é que sendo sensível apenas ao azul e ultra-violeta, que é a parte mais energética do espectro visível e seu entorno, qualquer mínima variação dos tons vermelhos na pele aparecem como manchas pois do verde em diante, rumo vermelho, onde se encontram os fótons “mais fraquinhos”, a gelatina não se impressiona e lê como preto. Foram muitas décadas até que a indústria fotográfica desenvolvesse emulsões pancromáticas capazes de ter seus haletos de prata “marcados” até mesmo por parte do espectro na qual os fótons carregam menos energia. Naturalmente, a fotografia começou por onde o efeito foto-sensível era mais provável ou onde era mais fácil encontrar rastros da exposição aproveitados depois pelo revelador.
O resultado é que sardas que não aparecem quando você olha a pessoa ao vivo, ficam muito evidenciadas na foto quando a emulsão de gelatina de prata é realizada com fórmulas mais simples. Isso dá um efeito muito pronunciado e artificial. Se fosse no sentido de rejuvenescer o retratado, provavelmente seria visto como uma virtude do meio. Mas não, o efeito é de envelhecer com essas marcas que parecem típicas da idade quando esta avança.
O remédio para isso é o retoque. Tanto as marcas por conta da resposta espectral como as marcas de rugas e outras irregularidades de superfície são escuras e aparecem no negativo como áreas mais transparentes. As primeiras são por conta dessa leitura peculiar das cores a as últimas por conta das sombras que se criam. Nos dois casos o remédio é escurecer essas porções do negativo para que clareiem na cópia final dando uma aparência uniforme e sem acidentes. Esse artigo irá falar de um tipo de retoque que tem exatamente esse fim: depositar material opaco sobre o negativo com o objetivo de melhorar a cópia final. Existe também o retoque que vai na direção inversa, que seria tornar áreas do negativo mais transparentes, adicionando sombras, mas isso se faz com raspagem ou rebaixamento químico. Ainda outro tipo de retoque consiste em mascarar o negativo dando um efeito semelhante à prática de dodging/burning ou algo como um soft-focus. Mas este artigo é especificamente sobre o retoque a lápis sobre a emulsão.
Lado a lado, acima, temos o mesmo negativo impresso antes e depois do retoque. Desde o início da fotografia muito se discutiu, e discute-se até hoje, até onde o retoque “pode chegar”. Em termos absolutos essa é uma discussão estéril. É como se houvesse um limite do justo e razoável e o retoque excessivo fosse algo condenável. Não existe tal regra universal separando o falso do autêntico em fotografia ou em qualquer meio de representação imagético. No exemplo acima eu apenas e intencionalmente tentei evitar uma aparência artificial que deixaria a imagem estranha e em conflito com estilo franco e direto do retrato. Para isso, quase que só cuidei das manchinhas devidas à leitura limitada do espectro que essa emulsão caseira proporciona. Acho que assim a ação fica mais discreta, causa menos espanto a diferença “antes x depois”, mas o “depois” sozinho, que era o objetivo final, fica mais equilibrado e bonito.
O retoque que adiciona material para clarear partes do negativo pode ser feito com lápis comum. A literatura recomenda em geral lápis bem duro como o 3H. Mas neste exemplo eu usei um HB da Faber-Castell. O problema que precisa ser resolvido antes de se usar o lápis é que a gelatina não risca pois é muito dura e lisa quando está seca sobre o suporte de vidro ou filme. Então é preciso preparar um líquido chamado “dope”, no inglês, que dá uma certa aspereza à superfície e permite que o grafite se desgaste e se deposite sobre a gelatina.
Os ingredientes são terebentina, goma de damar e óleo essencial de lavanda. Atenção para o fato de que a água-raz substitui a Terebentina vegetal em muitas aplicações, mas NÃO para a preparação do Dope, pois apenas a Terebentina vegetal dissolve a goma de Damar enquanto que a água-raz não.
A fórmula é a seguinte:
- 30 ml de terebentina
- 1 g de goma de damar
- 15 gotas de óleo essencial de lavanda
Simplesmente coloque tudo em um pequeno beaker e agite para dissolver. Essa dissolução é um pouco demorada. Um agitador magnético pode ajudar bastante, ou talvez, se os ingredientes forem deixados descansar, pode ser que ela ocorra naturalmente. Como não tive paciência de esperar eu não testei essa possibilidade. Depois desse primeiro retoque, me pareceu que esses 30 ml irão durar anos e anos. Uma pequena gota carregada por um palito é aplicada no centro da área do retoque. A partir daí, com o dedo ou outro meio que não deixe resíduos, um tecido que não solte fios, por exemplo, vai-se espalhando o dope em movimentos circulares. É bom cuidar para que a borda dessa área se espalhe sumindo sobre a emulsão. A secagem é rápida e o negativo estará pronto para o retoque. A superfície não fica grosseiramente áspera, quase nem se nota, mas para a ação do lápis é o que basta.
O retoque em si precisa ser feito observando-se a luz transmitida. A ideia é trabalhar os pontinhos brancos preenchendo-os até que sumam ficando indistintos em relação ao que está em volta. Essa parte é feita em uma mesa de luz ou em uma mesa de retoques antiga, que use apenas a luz natural. Essas mesas são difíceis de se encontrar à venda nos dias de hoje. Mas mesmo fabricar uma, pode ser bem interessante pois elas são muito mais confortáveis que a maioria das mesas de luz comuns. Por usar uma luz natural e portanto em harmonia com o ambiente em que você está, aparentemente, elas cansam menos. Essa mesa que utilizei é provavelmente da virada do século XIX ao XX. Ela é bem simples e acanhada comparada com outras que encontramos na literatura. No artigo mesa para retoques, há uma descrição completa e exemplos de retoques realizados em negativos antigos.
Fotografando-se a emulsão com a câmera inclinada, graças ao modo diferente como o grafite reflete a luz. pode-se observar as marcas deixadas pelo grafite. Fiquei surpreso de ver como é fácil preencher os pontos claros (que sairiam escuros nas impressões) usando o lápis. Quando a luz atravessa perpendicularmente o negativo, caso aproximado da impressão por contato ou de ampliador, as marcas do retoque ficam indistintas da imagem.
Creio que dê para fazer o mesmo processo com negativos em filme, pois a camada superior é também gelatina. Repito que é incrivelmente fácil e efetivo, parece Photoshop. Os movimentos do lápis, em um sentido ou outro, não aparentam afetar muito. Eu apenas ia passando uma ponta bem fina, de leve, fazendo pequenos círculos ou hachuras, e os buracos iam se preenchendo e sumindo um a um.
Antigamente se retocavam formatos bem menores ou detalhes muito mais finos do que esses que retoquei. Não se intimide se você faz médio formato ou mesmo 35 mm. É claro que, utilizando filmes pancromáticos, as necessidades de retoque serão outras. Mas a prática diz que basta ter a ferramenta para se encontrar ocasião de utilizá-la.
Tenho algumas placas do meio do século passado, com rostos que medem apensas uns 6 mm de altura (que caberiam folgado em filme 35 mm) e eles foram bem retocados. É questão apenas de apontar bem o lápis e usar uma lupa. Alguns exemplos podem ser vistos na página sobre a mesa de retoques.
Existe muito material online, cópias de manuais antigos do século XIX e início do XX, tratando do tema do retoque de negativos. Mas um em especial que considero o mais completo e do qual eu tirei a fórmula do Dope que apresentei aqui é parte de uma ótima coleção sobre fotografia disponível na Internet Archive: Complete Self-Instructing Library of Practical Photography – 1909, Schriever J. B.
Joan Crowford fotografada por George Hurrells e retoques de James Sharp – 1931. Acredito que as tantas pintinhas na pele da atriz não seriam visíveis, ou não seriam tão marcantes, ao vivo. Deve ter sido o problema recorrente das emulsões fotográficas não sensíveis ao vermelho.
Sensacional! Obrigado!
Obrigada. Gostei muito! Você faz retoque com lápis… Lápis comum, desses que usamos pra escrever? Ou lápis de pintar?
Sim, é com lápis comum. Nos manuais antigos de retoque eles aconselham usar um grafite bem duro 3H e até mais. Mas eu uso HB comum, desses que se compra em papelaria, e funciona bem. Só que é preciso passar o líquido que deixa o negativo mais áspero, sem ele o grafite escorrega e não pega na emulsão.