Temos fotografia
Quando François Arago anunciou processo fotográfico desenvolvido por Daguerre na famosa sessão de 10 de agosto de 1839 o sucesso foi imediato. Todos ficaram maravilhados com os finíssimos detalhes que a técnica conseguia reproduzir. Era como se o limite fosse a própria visão, como se a imagem gravada sobre a prata polida guardasse muito mais riquezas do que se podia discernir a olho nu. No entanto, apesar do enorme entusiasmo, as pessoas diretamente envolvidas com o novo processo sabiam que ele tinha ainda um ponto que necessitava urgentemente de melhorias. Esse ponto fraco era a óptica que as primeiras câmeras fotográficas empregavam.
A lente utilizada era um dubleto acromático fabricado pelo melhor opticista francês, Charles Chevalier, porém, era uma concepção emprestada de instrumentos ópticos como telescópios, concebida para se observar e não para registrar imagens. Embora percebessem suas limitações, ninguém imaginava o que poderia ser feito diferente para uma lente fotográfica. O problema específico e mais urgente é que a lente era extremamente lenta, isto é, que produzia uma imagem escura e demandava algo como trinta minutos de exposição mesmo em um dia ensolarado. Praticamente impossível de se utilizar com qualquer assunto que não fosse estático. Essa frustração foi imediatamente sentida pela nascente comunidade fotográfica que, a rigor, já existia mesmo antes da invenção da fotografia. Pois a fotografia foi longamente esperada e discutida entre cientistas, artistas, diletantes e gente da indústria óptica e de equipamentos. Pelo menos desde as experiências de Wedgwood no final do século XVIII já havia um consenso de que hora mais hora menos o processo químico para fixar as imagens da câmera escura seria encontrado. Mas o problema da lente tornou-se claro e evidente apenas quando o daguerreótipo estabeleceu uma referência sobre a exposição necessária. De um momento a outro descobriu-se que não havia óptica para a fotografia e todos opticistas de debruçaram sobre o problema. A solução foi a lente de Petzval.
Muito melhor que a visão
O problema a resolver na construção de uma lente fotográfica não é pequeno. Ela precisa ser, comparativamente, muito melhor que nossa própria visão. Isso pode parecer estranho mas basta observar que nosso olhar tem mais o aspecto de uma varredura, de um scanner, do que de registro instantâneo de uma cena completa, como é o caso da fotografia. Nossa visão só é realmente boa e registra detalhes em uma pequena área de nossa retina. Fora desse pequeno círculo que corresponde a um ângulo de visão bem modesto o que “percebemos” é algo muito indefinido e que nos dá apenas uma noção do que temos em nosso campo visual fora desse pequeno centro. É por essa razão que quando entramos em um ambiente novo, cruzando uma porta, por exemplo, nossos olhos precisam “passear” por toda a cena se quisermos fazer um reconhecimento daquilo que lá se encontra.
No caso da lente fotográfica, ela precisa registrar tudo com precisão em uma única tomada pois com a fotografia pronta, impressa em papel ou tela, queremos poder olhar e fazer o mesmo tipo de varredura que faríamos se estivéssemos diante da cena real. É nesse sentido que se exige de uma lente fotográfica muito mais do que exigimos de nossos próprios olhos.
As lentes que se utilizam em visão direta, como em telescópios ou binóculos para ópera, dois tipos de aplicação que eram comuns nos tempos da invenção da fotografia, seguem a mesma lógica da visão por varredura e apenas um pequeno ângulo do campo visual nos interessa. Por esse motivo, embora lentes fossem conhecidas desde a antiguidade, até o século XIX nunca se havia demandado de uma lente aquilo que ela precisa fornecer quando utilizada para registro fotográfico. Em seu livro The optics of Photography and the Photographic Lens, J.Trail Taylor coloca a questão nos seguintes termos: “Em óptica fotográfica a construção da lente precisa ser tal que forneça uma imagem nítida não apenas do objeto ao qual ela é dirigida, mas ainda daqueles que se encontram a uma certa distância a partir do centro”.
Entendido o problema, vamos passar às barreiras que dificultavam a sua imediata solução.
Lentes esféricas
O processo de construção de uma lente é ainda hoje basicamente por desgaste e polimento. Inicia-se com um bloco de vidro óptico e ele é lapidado até se chegar na forma o mais próxima possível de sua forma final. Essa era invariavelmente uma calota esférica, isto é, uma superfície com um raio de curvatura fixo. Poderia ser côncava ou convexa, mas a superfície era sempre esférica. Essa era uma limitação construtiva e ao mesmo tempo uma virtude pois o processo de polimento permite se iniciar com uma calota modelo em ferro, grosseiramente ajustada, para se terminar com uma superfície esférica praticamente perfeita e raio de curvatura precisamente determinado. Isso acontece pois o polimento transfere ao objeto polido não a forma local, de cada ponto do modelo (como seria o caso de fundição em um molde) mas a média de todos os seus pontos. Com isso pode-se obter uma precisão muito fina. Apenas no final do século XX lentes não esféricas começaram a ser comercialmente produzidas, mas toda a óptica fotográfica se desenvolveu a partir de combinações de superfícies esféricas com passagens de ar/vidro, vidro/ar ou vidro/vidro.
O que acontece nessas passagens é a mudança de direção do raio luminoso. Fenômeno conhecido como refração. Normalmente demonstrado com prismas, que são planos, mas é obviamente o princípio básico também nas lentes esféricas. A refração é conhecida e razoavelmente descrita mesmo antes de se formular uma teoria ondulatória da luz. O primeiro tratado em óptica que já continha alguns elementos que seriam válidos até hoje, entre eles algo sobre a refração, foi de um árabe Ibn Al Haithan (965 – 1039) que viveu na cidade do Cairo, Egito (La Lumière – Bernard Maitte). Quanto à palavra lente, ela vem do latim e refere-se à lentilha (leguminosa). No francês tem até a mesma grafia lentille. Há notícias de lentes corretivas para a visão desde a antiguidade. Mas foi com a luneta aperfeiçoada por Galileo que a óptica tomou um impulso definitivo para se transformar no que viria a ser da Revolução Industrial até nossos dias.
O primeiro problema que foi preciso resolver quando se passou a exigir maior qualidade das lentes foi a questão da aberração cromática. Como é sabido dos prismas, cores diferentes sofrem refração segundo ângulos diferentes e por isso as lunetas de ópera ou astronômicas, no início, apresentavam incômodas franjas coloridas em torno dos objetos, percebidas principalmente se vistos contra um fundo escuro. Mas em 1723 o inglês Chester Moore Hall ( 1703 – 1771) “demonstrou que é possível se construir objetivas acromáticas por superposição de lentes polidas de vidros diferentes convenientemente escolhidos” (La Lumière – Bernard Maitte) . A boa ideia foi utilizar uma lente convergente junto com uma outra lente, divergente, feita de um outro vidro, de tal forma que o conjunto ainda guardasse o caráter convergente, mas de modo que a segunda lente gerava um aberração cromática inversa (por ser divergente e com outro poder de dispersão) que praticamente anulava a primeira.
Foi com esse tipo de lente, o dubleto acromático, que a fotografia foi descoberta. Mas o cromatismo foi apenas a primeira batalha. Outros problemas aguardavam aqueles que não queriam apenas ver melhor mas queriam ainda registrar o que viam.
Uma câmera fotográfica pode ser pensada como sendo apenas uma caixa escura na qual se admite a entrada de luz por um lado e projeção da imagem no lado oposto. É intuitivamente óbvio que a luminosidade da imagem irá depender de quanto se deixa entrar de luz, ou seja, do tamanho do buraco na frente da câmera. Buraco no qual, é colocada a lente para domesticar a luz, isto é, fazer com que a luz que vinha divergindo a partir dos objetos convirja para formar uma imagem nítida (se isso é estranho para você visite esta página). Tendo a limitante de que a superfície das lentes era forçosamente esférica os opticistas encontravam o seguinte problema:
Mesmo com a aberração cromática dominada, quando tentavam aumentar a lente para aumentar a entrada de luz e tornar a imagem mais clara, viam que os raios luminosos não convergiam para o mesmo ponto na imagem. Os que passavam próximos ao eixo convergiam a uma distância maior do que os que passavam pela parte mais periférica da lente. O efeito se deve à superfície da lente ser esférica e por isso deram a esse problema o nome de aberração esférica. O resultado é a perda de nitidez na imagem pois são produzidas pequenas manchas a partir de pontos no objeto. Na região central da imagem esse efeito ainda pode ser tolerado pois não é tão acentuado, mas a situação torna-se bem grave com feixes de luz oblíquos ao eixo da lente.
Introdução do diafragma para corrigir a aberração esférica
Na Fig 47. acima (Monckhoven), se assumirmos a aproximação de que o feixe de luz saindo do ponto B, sobre o eixo da lente, converge satisfatoriamente sobre F, observamos que a luz vinda do ponto A, quando passa pela parte superior da lente (feixe marcado em azul) converge a uma distância muito mais curta do que a luz emitida pelo mesmo ponto A que passa pela parte inferior (feixe marcado em verde). Considerando que a parte verde, ainda que não esteja convergindo sobre o mesmo plano em que está o ponto F, que seria o ideal, está convergindo a uma distância bem mais próxima do plano de F se comparada ao feixe azul, foi encontrada a solução de bloquear os feixes que mais fortemente deterioravam a imagem.
O remédio encontrado para melhorar a qualidade da imagem, sacrificando sua luminosidade, foi interpor entre a cena e a lente um diafragma D, como se vê na Fig.48. Com esse dispositivo, geralmente uma chapa metálica com furo circular e mais tarde a iris regulável, seleciona-se o menos ruim dos feixes de luz para se tentar aproximar a imagem de uma forma plana. A superfície que receberia a imagem mais nítida é uma superfície côncava marcada pela linha vermelha. Esse fenômeno pelo qual as lentes esféricas formam imagens curvas é chamado de curvatura da superfíce focal da lente ou curvatura de campo. A curva é mais acentuada para aberturas grandes e se endireita bastante quando se fecha o diafragma. Encontra-se com frequência na literatura, a respeito de lentes que tenham boa correção para esse problema, a qualificação de que elas apresentam um campo plano (flat field). As lentes para as quais se considera a aberração esférica corrigida (é sempre uma aproximação pois não há correção total possível) são chamadas de aplanáticas (aplanétiques no francês ou aplanatic no inglês). A lente de Petzval foi a primeira lente aplanática – uma necessidade que veio junto com a invenção da fotografia.
A solução trazida por Petzval
A aberração esférica produzida por uma lente convergente é convencionalmente dita positiva. O foco dos feixes passando pela periferia da lente estão mais próximos da lente que o foco dos feixes passando pelo centro da lente (Fig 47 e 48). Dizemos que a curvatura de campo está para fora (linha vermelha na fig. 48 acima). O campo é côncavo se visto do interior da câmera. No caso de uma lente divergente o que acontece é o inverso, ou seja, o foco do que chega passando pela periferia da lente fica mais distante e os feixes passando pelo centro irão focar a uma distância menor. Diz-se da lente divergente que ela tem uma aberração esférica negativa e que a curvatura de campo está para dentro. O campo é convexo se visto do interior da câmera, o contrário do côncavo produzido pela lente convergente.
Assim como a aberração cromática foi corrigida satisfatoriamente com o uso de uma lente divergente em conjunção com a convergente, de tal modo que o efeito de uma foi anulado pela outra, mas sempre guardando um efeito convergente para o conjunto (para formar imagem sobre o filme), a aberração esférica com campo curvado para fora, também foi resolvida por Petzval pela adição de uma lente com efeito inverso, isto é, campo curvado para dentro.
Bom seria se uma única lente divergente pudesse anular as duas coisas. Mas é preciso cuidado com esses termos tão pesados como anular, cancelar, corrigir… pois tudo se passa na verdade por aproximações. As aberrações não são de fato zeradas, são simplesmente empurradas para um patamar dentro da resolução aceitável para a imagem na maior porção possível da mesma. Nesse sentido, um único dubleto, um único par divergente/convergente, até pode e normalmente são pensados para melhorar um pouco das duas coisas: cromatismo e curvatura de campo; mas um segundo dubleto acromático com curvatura inversa dá muito mais opções para o opticista trabalhar e lidar com as duas aberrações, com mais graus de liberdade e portanto maior eficiência. Foi essa a escolha de Petzval. Ele partiu do desenho de uma lente para paisagens, um dubleto acromático colado, e adicionou um segundo dubleto, espaçado por ar, também acromático, que iria curvar o campo no sentido oposto, gerar uma aberração esférica negativa, e dessa forma obter um campo “plano”. Inaugurou assim, como foi dito acima, a era das lentes aplanáticas.
O elemento frontal, voltado para a cena, é o dubleto colado, à direita na ilustração acima. Ele é quase plano convexo mas sua superfície traseira ainda é levemente côncava e forma portanto uma lente convexa/côncava cujo nome é menisco. O elemento traseiro tem duas funções. A primeira já foi descrita, trata-se de endireitar o plano focal curvando-o “para dentro” já que o dubleto frontal curva-o “para fora”. A segunda função foi também de capital importância e refere-se à luminosidade da lente.
A luminosidade de uma lente depende da área de captação de luz, chamada pupila de entrada, ou entrance pupil no inglês, que nada mais é do que o tamanho aparente do diafragma (aparente pois ele pode parecer e funcionar de fato como se fosse maior do que é se houver uma lente à sua frente, como é o caso da maioria das lentes fotográficas, veja uma descrição completa aqui) e depende também da distância focal da lente.
Quanto maior a pupila de entrada mais luminosa será a lente. Quanto maior a sua distância focal menos luminosa será a lente. Pois bem, com a adição do dubleto traseiro Petzval encurtou a distância focal de sua lente. Quando a luz passa por um segundo dubleto convergente ela obviamente irá convergir a uma distância menor do que passando apenas pelo primeiro. Com essa distância focal menor a lente tornou-se também mais luminosa sem precisar aumentar o diâmetro útil da lente que, como vimos, acentua o problema da aberração esférica.
A lente para retratos de Petzval
A lente projetada por Petzval apresentava uma abertura f/3,6 (Eder pag. 292). Essa é uma abertura muito boa mesmo para os padrões de hoje. É verdade que os materiais sensíveis evoluíram enormemente e isso baixou a pressão sobre a indústria óptica para produzir lentes mais luminosas. Mas o fato é que não são muito praticáveis aberturas muito maiores que essa. Algumas lentes de 50 mm comercializadas para fotografia com filmes 35 mm tiveram aberturas de f/1.2 e até f/.95 (Canon, por exemplo) mas o que acontece é que a lente começa a ficar com pupila de entrada comparável ao próprio filme ou sensor, a qualidade da imagem cai e ainda são muito caras para se produzir. Isso é impensável em grande formato, por exemplo, pois demandaria lentes com diâmetros enormes. A conclusão é que podemos dizer que Petzval chegou logo em sua primeira tentativa a algo próximo do limite do razoável em termos de luminosidade pois vale mais investir do lado do material sensível e manter as lentes nesse patamar de aberturas como efetivamente, historicamente, ficaram.
As lentes disponíveis antes da inovação de Petzval eram, como foi dito acima, simples dubletos acromatizados com um diafragma à sua frente. O máximo que se podia abrir esse diafragma e manter uma qualidade mínima na imagem era f/15. Isso colocava o tempo de exposição na casa das dezenas de minutos. Os retratados precisavam ficar imóveis todo esse tempo sob o sol se quisessem ter sua figura registrada para a posteridade pelo novo processo.
Nas primeiras tentativas com a nova lente foi possível se fazer um retrato em 1 ¼ minutos com o tratamento original do daguerreótipo. Quando os aceleradores químicos utilizando vapores de bromo e/ou cloro foram adicionados ao processo, logo em 1840, esse tempo caiu para algo como 15 a 30 segundos. (Eder, pag 293).
Mas o campo de nitidez da lente de Petzval, a rigor, ainda era apenas o suficiente para se fazer um bom retrato. Fora de uma região central onde o segundo dubleto ainda garantia um achatamento da curvatura de campo a imagem degradava-se rapidamente. Lemos no Traité d’optique photographique comprenant la description des objectifs et appareils d’agrandissement de Désiré von Monckhoven (1834–1882), escrito em 1866: “A objetiva dupla [assim era referida a objetiva de Petzval por diferenciação da objetiva simples, ou de paisagens ou ainda francesa, que tinha só um dubleto] é destinada aos retratos pois ela é a mais rápida entre todas as combinações ópticas inventadas até aqui. Munida de um diafragma muito grande (f/5 ou f/6) [refere-se aqui certamente ao que havia de mais disponível e não especificamente ao protótipo Petzval que tinha f/3.6] ela cobre nitidamente uma pequena extensão de plano focal (f÷3). Mas com um diafragma menor, f/10 por exemplo, a extensão de imagem nítida cresce bastante e chega a f÷2 à 2×f÷3. Enfim, com um diafragma f/20 a extensão da imagem torna-se igual a f “.
Vejamos então o que isso significa. Uma lente dupla de Petzval com 150 mm de distância focal, com abertura f/5 ou f/6 irá produzir uma área nítida de f/3 ou seja 150 ÷ 3 = 50 mm, um círculo de 50 mm de diâmetro.
A foto na carte de visite acima mede 60 x 85 mm. Não tenho nenhuma indicação de que tenha sido produzida com uma Petzval e nem mesmo de data. Mas ela serve para nos dar uma ideia das proporções daquilo que se considerava um retrato, pois está certamente dentro de uma estética e formato muito comuns no início da fotografia. O círculo marcado tem 50 mm de diâmetro e coincide com a área de nitidez de uma lente 150 mm que estaria próxima para esse formato de 1/8 de placa. A placa inteira era 18 x 24 cm e algumas vezes citada como 16 x 22 cm (por Lerebours et Secretan, por exemplo).
Bom notar que as pessoas não apreciavam o que se produzia fora da área de nitidez e o fotógrafo frequentemente vinhetava a foto deixando apenas a parte bem focada à mostra. A foto acima é um exemplo disso. O irônico é que hoje o desfocado do fundo parece maravilhar as pessoas mais do que o próprio retratado. Falaremos disso mais tarde.
A história da lente de Petzval
É muito interessante a maneira como Josef Petzval envolveu-se com a fotografia. Interessante também como em 1862, depois de sua famosa lente para retratos e intensa atividade, quando desenvolveu outras lenes, publicou novas teorias e descobriu novas leis da óptica, ele abandonou completamente tudo que se relacionasse ao estudo ou aplicação de lentes. Sua trajetória é muito ilustrativa da relação entre ciência e tecnologia na formação da sociedade moderna. Para nossa visão contemporânea, pode parecer que ciência e tecnologia sempre andaram de mãos dadas, mas a verdade é que por muitos séculos ignoraram uma à outra. Os primeiros grandes nomes da revolução científica no século XVII, tais como René Descartes (1596 – 1650) e mais tarde Isaac Newton (1642 – 1726/27), não eram de forma alguma motivados pela preocupação ou interesse em que suas teorias tivessem qualquer aplicação prática. Na outra ponta, as manufaturas eram organizadas ainda em guildas ou outras associações de inspiração medieval. Viviam longe das universidades e transmitiam os segredos de suas especialidades pela tradição do mestre e aprendiz. Não imaginavam que estudando matemática ou Filosofia Natural (nome dado então à Física) poderiam desenvolver novas técnicas e melhorar a sua produtividade. Até o conceito de “melhorar a produtividade”, por si só, já soaria estranho ao pensamento pré-industrial. A história da lente de Petzval é um caso que ilustra bem o que estava em jogo na nova relação entre indústria e academia quando ciência e tecnologia por fim se encontraram.
Josef Maximilian Petzval nasceu em 1807 na Hungria em uma família alemã. Seu pai era professor de escola média. Josef se formou em engenharia e tornou-se professor de matemática na universidade de Budapeste. Em 1835 foi chamado para lecionar matemática avançada na universidade de Viena, onde entrou também para a Academia de Ciências. Não por acaso, havia na cidade uma grande efervescência cultural e de negócios, pois era política do imperador fomentar esse ambiente e sobretudo seu chanceler Klemens von Metternich (1773–1859) era um entusiasta de novas tecnologias. Tanto que quando soube da novidade do daguerreótipo, enviou a Paris Andreas Freiherr von Ettingshausen (1796–1878), professor de matemática e física na universidade, para informar-se detalhadamente sobre o novo invento e estar presente na sua apresentação oficial na Academia de Ciências de Paris. A maneira como ele soube da novidade também é interessante. Consta que o próprio Daguerre, melhor em relações públicas que em química ou óptica, enviou como presente ao imperador Ferdinando I duas fotografias de sua autoria.
Havia em Viena um opticista de fama internacional, Simon Plössl, formado na casa Voigtländer, outro importante fabricante de instrumentos ópticos, também estabelecido em Viena e que teria ainda um papel chave nessa história toda como veremos a seguir. Foi Plössl quem logo construiu uma câmera para daguerreotipos com uma lente do tipo Chevalier, mas com raios melhorados que ele mesmo aperfeiçoou. Utilizou para tanto vidros ópticos fabricados pela família Waldstein que era capaz de produzir crown e flint (dois tipos de vidro utilizados no dubleto de Chevalier) de excelente qualidade. Os Waldstein também estavam instalados em Viena. Ettingshausen, havia discutido o invento de Daguerre com o diretor da universidade e este nomeou um jovem assistente do departamento de física, Anton Georg Martin, para aprender e dominar o processo fotográfico. Seria ele o primeiro a testar, mais tarde, a lente de Petzval.
Segundo Corrado D’Agostini, a maioria desses personagens encontravam-se regularmente no atelier de um pintor, que era também físico e naturalista, chamado Carl Schuh. Tinham até mesmo um nome: Círculo de Furstenhof, emprestado do bairro onde estava localizado o atelier, e discutiam tantos assuntos quanto a diversidade dos frequentadores pudesse abarcar. Eram artistas, cientistas, empresários e diletantes; gente de dentro e de fora do meio acadêmico. Sobre a opinião do grupo a respeito da novidade de Paris, Eder (pag.290) a resume da seguinte maneira:
“A pequena abertura das lentes de Chevalier com as quais Daguerre equipou sua câmera foi largamente deplorada. Professor Ettingshausen logo reconheceu, assim que o daguerreótipo tornou-se público, a insuficiência da lente ordinária de Chevalier, que era exportada de Paris para o mundo todo. Como colega e amigo, ele conhecia o gênio de Petzval [que também frequentava o Círculo de Furstenhof], para a matemática e a óptica, e o induziu a dar uma boa olhada no problema da construção de uma lente fotográfica melhor, ao que, Petzval respondeu entusiasticamente.”
No lado teórico, leis de refração, que regem o comportamento da luz ao passar de um meio a outro, como ar e vidro, e que portanto serviriam para entender seu caminho ao atravessar uma lente, foram estudadas por Snell e publicadas por Descartes em sua Dioptrique já em 1637. Portanto duzentos anos antes da invenção da fotografia. Uma formulação completa da teoria ondulatória da luz foi feita por Christiaan Huygens (1629 – 1695) em 1678, do qual Descartes foi preceptor. No lado prático, os dubletos acromáticos foram inventados por Chester Moore Hall, para uso em telescópios, por volta de 1730, porém ele não fez publicidade de sua descoberta. Já o inglês John Dollond , desenvolveu também seu dubleto acromático para equipar telescópios e o tornou conhecido em 1758. Tudo isso era feito, observa Eder (pag.251) através de métodos experimentais, testes sucessivos sem um esforço sistemático de compreensão da física que estava por trás do fenômeno observado. Mais tarde, o alemão Joseph Ritter von Fraunhofer (1787–1826), em Munique, já no início do século XIX, mostrou o cálculo exato para o entendimento das lentes acromáticas e reuniu teoria física e tecnologia de fabricação de lentes em um novo território de conhecimento híbrido.
Apesar desse reservatório de conhecimento teórico científico e do envolvimento de físicos como Fraunhofer em questões práticas como a fabricação de vidros e lentes, os fabricantes de instrumentos ópticos, em especial na França, ainda pouco se serviam da matemática para melhorar sua produção. Rudolf Kingslake, em seu A History of the Photographic Lens, relata que Charles Chevalier estava consciente da deficiência de sua lente em termos de luminosidade, mas conta que o maximo que consiguia fazer era experimentar e combinar vários dubletos que tinha na sua estante para ver se com alguns dos pares tomados praticamente ao acaso conseguiria um resultado melhor.
O matemático Josef Petzval marca a transição. A colaboração entre academia e indústria, no caso da óptica, originou-se de um quadro bastante peculiar. A ciência moderna deve muito do seu nascimento à observação dos céus. Foi na astronomia de Kepler e Galileo que a Terra passou a girar em torno do Sol e não o contrário. Este fato, aparentemente sem relação direta com o cotidiano dos habitantes de nosso planeta, teve na verdade um efeito devastador sobre a concepção medieval de que o mundo, criado por Deus em sua infinita sabedoria, seria um eterno mistério para a humanidade. Inauguraram assim uma concepção mecanicista do universo, como um grande relógio, concepção que sem negar uma origem divina, abria caminho para a compreensão humana através da investigação sistemática, do método científico, nos moldes fundadores de Descartes.
Historicamente, a colaboração entre artesãos e cientistas nunca havia colocado os dois em muito estreita relação. A ciência antes do renascimento era mais filosófica, trabalho de reflexão e pouca atividade manual, pouco laboratório, poucos equipamentos. Excessão a isso era justamente a astronomia com seus maravilhosos astrolábios e observatórios desenvolvidos sobretudo no mundo árabe. Mas estes eram basicamente instrumentos de medida. Exigiam precisão, exibiam primor técnico e estético porém, se serviam à ciência, pouco se serviam da ciência para sua construção além de suas medidas e especificações. Não demandavam mais que técnica de fundição, acabamento e gravação em metais.
Quando os instrumentos ópticos como telescópios e microscópios passaram a fazer parte do arsenal científico o artesão continuava sendo necessário porém não mais suficiente. Não seria mais possível se manter as duas expertises separadas. Os cientistas em geral nem saberiam fundir e tornear metal. Artesãos foram muito longe em desenhar lentes experimentalmente mas chegou um ponto em que a óptica geométrica com a consideração das leis da refração se tornou absolutamente necessária. Com a lente fotográfica o método da tentativa e erro mostrou-se definitivamente infrutífero. Por comparação, embora a máquina a vapor tenha sido inventada sem o uso das leis da termodinâmica, lentes capazes de formar imagens de qualidade em astronomia seriam improváveis, em fotografia impossíveis, sem a colaboração entre o trabalho manual e intelectual, entre técnicos e cientistas.
Analisando sob este ângulo, o caso da lente de Petzval foi o produto do seu talento individual mas também de uma comunidade e de uma política que vinha se desenvolvendo em Viena já de algumas décadas. O modelo veio justamente de Munique onde Fraunhofer atuava tanto na pesquisa básica, desenvolvendo a teoria ondulatória da luz, observando o espectro solar, como também orientando e fornecendo desenhos e especificações para aplicações na indústria de instrumentos e produção de vidros ópticos. Como já foi dito acima, foi Fraunhofer quem finalmente equacionou as lentes acromáticas e publicou seus resultados, mais tarde assimilados pelos fabricantes de lentes. Munique foi na época o mais importante centro de desenvolvimento em óptica de toda a Europa. De Viena, na universidade, dois professores trabalhavam em colaboração estreita com Fraunhofer. Eram eles Johann Joseph von Prechtl (1778 – 1854) e Simon Ritter von Stampfer (1792 – 1864). Escreveu Eder que durante a vida de Fraunhofer os dois limitaram-se ao compartilhamento de assuntos mais acadêmicos. Evitavam assim estabelecer uma concorrência muito escancarada entre a produção e comércio dos dois centros. Mas após a morte de Fraunhofer a assistência da universidade aos opticistas em Viena, onde estavam instalados a família Voigtländer e Plössl, por exemplo, foi uma espécie de apadrinhamento sem outro objetivo que o desenvolvimento conjunto de ciência, tecnologia e mercado. Até mesmo na instalação da indústria de vidros ópticos, Prechtl teve um papel fundamental, auxiliando e orientando estrategicamente a produção de vidros crown e flint em Viena.
Sobre esse papel de tutores Eder comenta ainda que “o jovem Wilhelm Friedrich Voigtänder devia sua educação técnica a Stampfer, presumivelmente no início dos anos trinta do último século [no caso, o XIX]. Muito importante, estudou sob sua orientação os processos para determinação dos índices de refração em prismas”. Quando Petzval iniciou seu estudo para melhorar a lente de Charles Chevalier, o físico Ettingshausen o aconselhou a ir buscar com Friedrich Voigtänder informações sobre os índices de refração e dispersão dos vidros disponíveis na indústria.
A universidade assumira como parte de seu papel formar e fornecer conhecimento científico para a aplicação técnica na industria e o fazia sem que esta última precisasse remunerá-la por isso. Viam como um serviço público visando o desenvolvimento regional. Outros setores com interesses não diretamente financeiros também aportaram ajuda ao projeto da nova lente. Consta que um certo arquiduque Ludwig, diretor geral da artilharia no exército austríaco, solicitado por Petzval, ordenou que dois oficiais e oito artilheiros, treinados em balística, o auxiliassem a simular matematicamente o caminho dos raios luminosos para avaliar teoricamente o comportamento da lente em desenvolvimento. Esse trabalho de cálculo numérico, muito tedioso, seria hoje executado por computadores em milésimos de segundos. Petzval e sua equipe levaram seis meses, ao final dos quais retornaram em maio de 1840 com uma proposta para a lente para retratos, que foi acima descrita, e ainda uma segunda lente para paisagens na qual sacrificavam um pouco a luminosidade em troca de um campo maior e com curvatura mais plana. Essa lente seria mais tarde conhecida pelo nome Orthoscope. Nome que remete à ortogonalidade que oferecia a assuntos sobretudo de arquitetura.
Talvez tenha ajudado esse clima de colaborações patrióticas desinteressadas o fato de que a indústria óptica, antes da fotografia, tinha como principais ativos de sua produção telescópios e microscópios, itens que bem ou mal podemos supor que retornavam em grande parte para a comunidade científica, ou pelo menos para uso profissional e limitado. Nesse sentido, professores estavam ajudando quem a eles fornecia suas ferramentas. Com a fotografia o cenário mudou. O produto, a princípio científico, se tornou popular, massivo, e movimentou somas muito elevadas de dinheiro. Essa novidade azedou a curta lua de mel entre cientistas e industriais em Viena.
A colaboração de Petzval e Voigtänder
A família Voigtänder estava estabelecida em Viena desde 1756 . Inicialmente dedicados à mecânica fina, mas já a partir da segunda geração, quando em 1815 Johann Christoph Voigtländer assumiu os negócios, incluiu no seu portfólio instrumentos ópticos. Johan havia recebido uma formação sobre a fabricação de lentes na Inglaterra. Quando Petzval calculou sua lente, em 1840, a terceira geração comandava a então já muito prestigiada empresa nas mãos de Peter Wilhelm Friedrich von Voigtländer (1812-1878). Peter era também frequentador do Círculo de Furstenhof e conhecia Petzval. Como vimos acima, Peter colaborou ao fornecer os índices de refração e dispersão que Petzval necessitava para seu projeto. Foi e a ele que este último confiou os desenhos e especificações detalhadas de sua primeira lente.
Voigtländer fabricou então a tão aguardada lente. Ela tinha 150 mm de distância focal e uma câmera toda em metal, de forma cônica, na qual o daguerreótipo tinha a forma circular, foi fabricada para recebe-la. O foco e enquadramento eram feitos em um vidro despolido e a seguir a câmera inteira era removida do suporte e levada para um local protegido da luz para a troca do despolido pela placa sensibilizada. De volta ao suporte, era então realizada a tomada fotográfica. Cerca de setenta câmeras dessas foram fabricadas segundo Kingslake (pag.37) em 1841 e seiscentas em 1842. Mas apenas 3 conjuntos completos são conhecidos hoje. Extremamente raros são também os daguerreótipos com ela realizados. Houve uma edição de réplicas oficiais feitas pela própria Voigtländer, muito tempo depois, e até essas são muito disputadas e verdadeiras peças de museu, como o exemplar acima no museu Nicéphore Niépce em Chalons sur Saône na França.
Voigtländer não hesitou em incluir imediatamente a nova lente entre seus produtos e o sucesso comercial foi enorme e instantâneo. Petzval não havia feito nenhum tipo de contrato estipulando qualquer participação ou direitos de exploração em quantidades ou prazos sobre os seus desenhos. Simplesmente entregou todas as especificações para que o amigo opticista realizasse seu projeto. Voigtländer, recebeu o projeto como simplesmente mais um caso em uma fileira de contribuições que recebera da universidade desde os tempos de Stampfer e outros. Para mostrar sua apreciação por Petzval, a quem consta que ele tinha na mais alta estima, deu a ele 2000 florins como gratificação. Como ordem de grandeza, esse era o preço de uma lente muito cara ou de três ou quatro lentes normais. Até o início dos anos 50, enquanto que em algo como dez anos, a Voigtländer fabricou e vendeu oito mil lentes.
Petzval viu uma grande injustiça nessa apropriação que julgava indevida de sua criação. A relação entre os dois foi recrudescendo e em 1845 Petzval não queria mais nada com a Voigtländer. Nesse período ainda utilizava as oficinas da firma para experimentos e assistência para realizar novos projetos ópticos, mas até disso abriu mão. Tamanha a sua ira, começou ele próprio, sem assistentes e com suas próprias mãos a lapidar e polir suas lentes. Relata Eder que ficou até muito eficiente nessa produção caseira e que vendeu várias lentes mas apenas de modo privado. Não abriu um negócio propriamente dito (pag.297).
Quanto a Peter Friedrich Voigtländer, é preciso ter um certo cuidado e não se precipitar a lista-lo no estereótipo do empresário espertalhão aproveitando-se do cientista ingênuo. Fosse assim, provavelmente ele teria tomado alguns cuidados básicos e planejado o lançamento da nova lente. Teria resguardado direitos para a sua firma Voigtländer, teria patenteado os desenhos a seu favor, teria vendido licenças para outros fabricantes em outros países, entre outras medidas óbvias e conhecidas à sua época. Mas parece que ele também foi pego de surpresa e tratou a nova lente como provavelmente tratava os instrumentos científicos que fabricava e que certamente tinham uma demanda muito menor.
Em vez uma estratégia de resguardo à qualquer propriedade intelectual, foi dada publicidade a uma invenção que não tinha proteção alguma, nem para o seu inventor e nem para o fabricante. Pois já em 1841 a lente para retratos foi inscrita em um edital da Sociedade de Encorajamento de Paris que ofereceu um prêmio a quem apresentasse uma alternativa significativamente melhor às lentes então disponíveis para a fotografia. Foi como contar o segredo ao mundo todo. A lente de Petzval concorreu e ficou com o segundo lugar, um erro enorme de avaliação do juri que premiou uma nova lente de Charles Chevalier que tinha um desempenho muito inferior. O que veio a seguir foi que a lente de Chevalier foi abandonada e a de Petzval copiada por todos os fabricantes que assim o desejaram, e foram muitos.
Eder (pag.296) lamenta a postura tendenciosa de Potoniée, historiador francês, que em sua Histoire de la Découverte de la Photographie atribui o sucesso da lente de Petzval ao fato dos franceses gostarem de produtos estrangeiros e de valorizar o que é mais caro apenas por achar que o preço indica a qualidade. De fato, as lentes alemãs custavam em média o dobro de uma similar francesa. Mas Potoniée não menciona o fato de que as francesas eram cópias das alemãs e que jamais fizeram qualquer referência ao seu verdadeiro inventor, Joseph Petzval. Nos catálogos desses fabricantes, como no de Lerebours et Secretan de 1853 reproduzido abaixo, a objetiva era referida como “objetiva dupla”, “objetiva a vidros combinados”, “objetiva alemã” ou “sistema alemão”.
Seja como for, a lente de Petzval continuou sendo considerada a melhor lente para retratos por muitas décadas. Já para o final do século XIX, com o desenvolvimento de novos vidros e lentes anastigmáticas, quando a fotografia aproximou-se bastante da imagem praticamente perfeita em todo o campo, sem distorções ou perda de nitidez, outras lentes fizeram história. Mas ainda hoje, talvez até possamos dizer: sobretudo hoje, um retrato feito com uma Petzval revela uma beleza e um equilíbrio muito sedutores.
Joseph Petzval abandona a óptica
Relembrando, em maio de 1840, Petzval e seus artilheiros haviam produzido dois desenhos que foram entregues a Peter Friedrich Voigtländer. Um deles era a lente para retratos e o outro uma lente para paisagens. Talvez eclipsada pelo sucesso instantâneo da primeira, essa segunda lente ficou arquivada, esquecida na Voigtländer, e não chegou a ser lançada no mercado.
Depois de romper com Voigtländer em 1845, como vimos, Petzval continuou estudando teoria, desenvolvendo e até fabricando sozinho outras lentes. Em 1856, quando o processo da placa úmida (colódio), inventado por Frederick Scott Archer (1813–1857) em 1851, já se configurava como o futuro da fotografia, pois permitia imagens bem maiores em placas de vidro e com tempos de exposição muito mais curtos que o Daguerreótipo, Petzval foi solicitado tanto pelo Instituto Geográfico Imperial Militar de Viena, como pela gráfica do governo, para desenvolver uma nova lente para usar o novo processo nessas aplicações. Petzval viu aí uma oportunidade para introduzir sua lente para paisagens desenhada em 184o.
Desta vez procurou e associou-se com um outro opticista chamado Dietzler e lançaram uma revisão do primeiro desenho. Chegaram a solicitar e receberam uma patente austríaca para a nova lente que chamaram de Photographischer Dialyt. Ela foi lançada em 1857, muito bem acolhida, foi adotada para fotografias principalmente de arquitetura e reprodução de obras de arte. A vantagem é que, embora mais fechada que a lente para retratos, tinha um ângulo de visão maior e apresentava pouca distorção para o padrão da época.
Esse movimento chamou a atenção de Peter Friedrich Voigtländer e ele reconheceu no lançamento de Petzval o desenho que no seu entender lhe pertencia. Recuperou as especificações e lançou a mesma lente com o nome Orthoscope em 1858 de sua fábrica em Braunschweig para onde ele havia mudado sua produção , deixando Viena, inclusive como medida protetiva com relação a problemas de patente. Petzval reagiu e os dois tiveram até um processo judicial. Eder relata que no curso da disputa ficou claro que Petzval realmente havia esquecido que entregara também esse desenho, havia quase vinte anos, para o agora seu inimigo. Peter Friedrich Voigtländer juntou ao processo os desenhos originais e um protótipo de época que havia feito e acabou ganhando a causa.
Por conta do poder e prestígio do nome Voigtländer, e também pelas características da lente, a Orthoscope tornou-se rapidamente um sucesso e praticamente sinônimo da nova categoria de lentes para paisagens. Dietzler e Petzval viram-se obrigados a abandonar o nome que haviam dado à lente, Dialyt, e passaram a vender a sua produção também sob o nome Orthoscope. Conheceram um relativo sucesso e na exposição de 1862, em Londres, tanto eles como a Voigtländer receberam medalhas por suas lentes Orthoscope. Mas Petzval parecia não ter sorte mesmo para os negócios. Dietzler era muito fraco na gestão da firma e apesar do bom começo, logo após a medalha na exposição, uma série de problemas o levou à falência.
Ainda em 1862, profundamente frustrado e depressivo com todo o desgaste em suas disputas com Voigtländer e agora com esse novo fracasso na empreitada que deveria ser a sua reabilitação, Petzval resolveu abandonar completamente tudo que tivesse relação com lentes ou óptica em geral. Nem mesmo aulas e palestras na universidade ele quis manter. Dali em diante dedicou-se à acústica. Como cientista foi muito respeitado e sempre teve a admiração de seus colegas. Morreu em 1891.
Usando uma Petzval hoje
As lentes para retratos com o desenho de Petzval ainda despertam muito interesse entre fotógrafos e público. Isso não aconteceria, não fosse o fato de que as imagens ficam muito bonitas. Outro ponto que acredito contribuir é que estamos um pouco assustados com onde o progresso tecnológico nos trouxe e então, flertar com tecnologias tão antigas nos oferece um efeito compensatório ou uma ilusão de independência do presente.
Como vimos acima, a curvatura de campo é bem corrigida no centro da imagem, algo como f÷3, e fora desse círculo a aberração esférica toma conta e gera um interessante desfocado que, conforme o assunto, aparece como uma espécie de redemoinho. Importante dizer que esse efeito é muito diferente da perda de foco por profundidade de campo devido a um diafragma muito aberto em lentes modernas. A profundidade de campo é inerente a qualquer lente de hoje ou de ontem. A aberração esférica, que para raios oblíquos recebe o nome de coma, é algo que pode ser bem corrigido. Algumas lentes ditas soft focus, tem um anel que ao ser girado pode dosar a quantidade de aberração esférica que o fotógrafo quer introduzir em sua foto.
Para se usar uma lente de Petzval hoje o fotógrafo tem duas opções de base:
- Fotografar com filmes ou algum processo analógico histórico, em grande formato; e para isso usar lentes fabricadas realmente no século XIX. Creio que não se fabricam lentes tipo Petzval para grande formato nos dias de hoje. Seria mais caro e menos charmoso que as Petzval antigas.
- Adquirir uma das novas versões que são fabricadas hoje para o formato digital, em full-frame ou APS-C.
Na primeira opção, comprar a lente não é tão óbvio, principalmente aqui no Brasil, porém é possível encontra-las em sites internacionais de leilões e feiras como a de Bièvres. O preço varia muito de acordo com o fabricante e principalmente tamanho da objetiva. Muitas lentes não trazem nenhuma marca, são como Petzval genéricas. Se tiverem uma distância focal entre 150 e 250 mm, para fazer de 1/8 a 1/2 placa, que seria 6 x 9 a 13 x 18 cm, irão custar, em bom estado, algo como 250 a 500 euros, se você pesquisar bem. Lentes da Voigtländer, Jamin-Darlot, Lerebours et Secretan, Ross, Dallmeyer ou outro fabricante importante, já irão custar 2 a 3 vezes esse preço. Existem lentes tipo Petzval com distância focal menor, mas são mais raras. Em geral equipavam máquinas estéreo ou são lentes desenhadas para projeção. As lentes maiores, para placas inteiras ou super grande formato, já começam a rarear bastante e atingem facilmente alguns milhares de euros. Mas são verdadeiros patrimônios e até com boa liquidez.
Se o objetivo for explorar as aberrações e seu contraste com o centro bem definido, pode-se adquirir uma lente desenhada para um formato menor e usá-la em um formato maior. Por exemplo, uma lente de meia placa usada em placa inteira. Nos catálogos e fichas dos fabricantes do século XIX vemos que eles eram mais conservadores quanto à cobertura de suas lentes e excluíam ou não contavam muito com a parte fora da região de melhor definição.
Para o uso em digital, embora esteja na moda adaptar lentes antigas em corpo de câmera nova utilizando-se anéis adaptadores e outras gambiarras, no caso da Petzval isso provavelmente irá frustrar justamente na questão do desfoque do entorno. Com uma área nítida de aproximadamente um terço da distância focal uma lente Petzval antiga com 120 mm (já bem curta para a categoria e difícil de achar) irá proporcionar um círculo bem definido de 40 mm. Isso já é maior que o APS-C e quase o full-frame, ou seja, a imagem sairá bem definida no campo todo.
Para simular a relação entre distância focal, tamanho do assunto fotografado, tamanho da imagem, deslocamento da lente e distância lente/assunto, visite esta calculadora que faz exatamente essas contas de modo gráfico e intuitivo. Isso pode ser muito útil principalmente antes de comprar uma lente pois você poderá verificar de antemão o que dá para fazer com ela e como que ela se adapta à sua câmera. Verificar, por exemplo, se o fole tem tamanho para fazer um retrato fechado só no rosto.
Para uso com câmeras digitais o ideal mesmo é comprar uma lente nova, fabricada atualmente, seguindo o conceito da Petzval. Existe a Lomography Petzval 85mm f/2.2, mas parece que sua oferta é um pouco errática. No momento em que escrevo este post ela está em falta no site oficial mas está à venda na B&H. É preciso pesquisar.
Algumas lentes tipo Petzval para retratos
Orthoscope, a lente de Petzval para paisagens
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